Este ano teve início com Gilead de Marilynne Robinson um livro sob a forma de epístola, uma carta escrita por um pai a um filho que sabe que não vai ver crescer e com quem não vai poder partilhar uma experiência de vida cujo lastro se sabe perdido, mas que este pai quer deixar como herança ao filho que lhe vai sobreviver conquistando um pouco mais de tempo. Robinson é mestre de uma escrita irrepreensível, embora o tema não pudesse estar mais distante daquilo com me identifico, e relata-nos a estória de um pregador norte-americano, descendente de uma família de homens com as mesma profissão, e cujo olhar nos permite ver de relance a vida numa cidade da América profunda e sentir as ondas de reverberação desse microcosmos naquilo que nos habituámos a julgar como a vida dos verdadeiros descendentes dos colonos norte-americanos, longe da sofisticação dos grandes centros urbanos. A personagem, e a sua profissão, podem estar distantes daquilo com que me identifico mas o contorno da sua vida e os problemas mais fundamentais com ela se depara encontram-se muito próximos das minhas ansiedades cujo eco e síntese encontrei nesta frase “Every single one of us is a little civilization built on the ruins of any number of preceding civilizations, but with our own variant notions of what is beautiful and is acceptable – which, I hasten to add, we generally do not satisfy and which we struggle to live.” Aqui encontramos o potencial de todo o drama humano, a luta perdida entre o que desejamos ser, em toda a sua dimensão estética e moral, e aquilo que somos na realidade. Estamos todos sujeitos a esta frustração e o grau do nosso sucesso e realização, como seres humanos, depende em grande parte da convivência pacífica com este olhar, por vezes cruel, que nos é devolvido pelas sombras imperfeitas dos nossos gestos.
O
livro seguinte Orfeo de Richard
Powers, prometia-me mundos e fundos, a começar pelo título cujo tema me deixa
sempre curioso e alerta. A ideia original é muito boa, e agora aconselho os
leitores mais sensíveis a desviarem o olhar (caso não queiram que vos estrague
a leitura do livro), um professor de música reformado, que também é compositor,
e nos tempos livres decide manipular geneticamente uma bactéria aparentemente
inofensiva com o objetivo de deixar impresso no seu DNA um código musical que
ela irá repetir por toda a eternidade. Powers relembra-nos que vivemos numa época de histerismo
global, sobre terrorismo e ataques terroristas. A paranoia coletiva ajuda a que sejamos levados a pensar
que o nosso inimigo poderá ser o nosso vizinho ou, pior ainda, alguém da nossa
própria família; ninguém é inocente nesta sociedade Kafkiana imersa num tipo de tecnologia que é o sonho tornado realidade da ficção, cada vez mais próxima, descrita em 1984 de George Orwell. Nestas condições todos somos
culpados inclusive um inocente reformado que faz manipulação genética na sua
casa de subúrbio, claro que este mais culpado que os outros porque ousa querer
mudar o mundo através de uma pequena ideia poética mas que rapidamente se torna
subversiva, primeiro aos olhos dos outros e depois aos olhos dele próprio. O livro oscila entre uma história da música contemporânea suportada numa estrutura de romance, aqui entenda-se no sentido literal do termo, que na
maioria das vezes não funciona. É notório que o autor se encontra dividido entre
nos apresentar um conhecimento enciclopédico mas ao mesmo tempo sublinhado por uma
relação de afetos que a personagem que criou vai estabelecendo ao longo da sua vida. Infelizmente
nunca consegue que o livro levante voo na direção certa, seja ela qual for,
porque se pressente que tudo está clinicamente ensaiado e feito num laboratório de
luz fria e asséptica onde poderemos encontrar os catálogos de todas as emoções mas nunca as
emoções propriamente ditas. É como olhar para uma pauta que podemos ler nota a nota, sem erros, mas de cuja leitura nunca sairá o contorno emotivo que se encontra para lá da contagem perfeita dos tempos marcados na pauta e que é a verdadeira essência da música.
[Continua]
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