Lobotomia: uma história de amor
“E Morreram Felizes Para Sempre” é um espetáculo que me trouxe à memória a casa
assombrada que há uns anos poderíamos encontrar na defunta Feira Popular, onde
atores recriavam ao vivo cenas de terror (teatro imersivo?) ou a minha visita
ao parque da Universal Studios, na Califórnia, onde fui encontrar uma versão ampliada
da mesma casa assombrada mas com referencias fílmicas específicas, resultantes
das produções dos filmes de suspense e horror deste estúdio de Hollywood. Não
consigo decidir se é bom ou mau mas afasta-me definidamente daquilo que
considero teatro, mesmo num sentido não muito restritivo do termo.
Desde
que me conheço que gosto e frequento teatros, pelo teatro, e já o vi
representado sob muitas formas mas que na sua essência respeitavam alguns dos
princípios básicos que nos permitem identificar um espetáculo como sendo
teatral. No entanto, neste caso, a tarefa torna-se complicada. Tudo é demasiado
superficial para que possa ser considerado mais do que um competente anúncio de
televisão, sobre o qual não devemos, nem interessará, pensar muito
profundamente. Se o princípio que sustenta o espetáculo, a este nível, até pode ser
considerado aceitável quando inspecionado mais profundamente, em termos
teatrais, revela-se um desastre absoluto.
As
ideias encontram-se tão soltas como a ligação dramática entre as várias cenas
que só podemos acompanhar se nos dispusermos a correr, literalmente, de um lado
para o outro, fixando-nos numa das personagens ou indo ao sabor das nossas decisões
do momento. As ideias avulsas que encontramos seriam ótimas para vender o último champô ou
desodorizante do mercado mas em termos dramáticos valem muito pouco. Talvez
ajude a clarificar se fizer um resumo da sinopse, que vai buscar
inspiração à muito lusitana estória de amor malfadado de “Pedro e Inês”. Como o
espaço onde foi dramatizado este espetáculo é um hospital, em particular um
hospital psiquiátrico, junta-se à estória de Pedro e Inês a da técnica de
lobotomia de Egas Moniz, agita-se bem e espera-se que cole, mas infelizmente
não cola. Cedo se percebe que o foco principal nem sequer é contar uma estória
ou permitir que os espectadores se deixem envolver e emocionar por essa
estória, o foco principal é criar ambientes em micro-palcos espalhados ao longo
de mais de vinte salas e onde se exige um nível de concentração próxima de
zero, como é apanágio de uma cultura televisiva cada vez mais dominada pelo zapping,
o qual se tornou o exercício intelectual mais
praticado por
esse mundo fora. A dança é assumida como o principal meio de comunicação neste
espetáculo mas falta-lhe a dimensão da palavra, senão que teatro é este? Até no
teatro-dança de Pina Bausch encontramos a palavra. As poucas vezes que a voz é ouvida é
sob a forma de grito ou trasvestida de um playback manhoso e quase patético.
Como
não somos presos pelo lado emocional acabamos por deixar vir ao de cima apenas
o ser racional que no seu estado puro é quase tão brutal como o irracional e só
conseguimos ver fórmulas gastas em todo o lado: os enfermeiros maléficos, a
mulher louca, o piscar de olhos ao universo gay, pois Pedro, que neste caso é
médico e sim Inês é enfermeira!, não só se apaixona por outra mulher, que não a
sua esposa, como mantém uma relação com outro enfermeiro, o bom, (não, isto não
é a Anatomia de Grey...) , na ausência de palavras usa-se o som estridente para
confundir os sentidos, pede-se a um ator que faça nu integral, e um rol de
clichés que nem vale a pena catalogar.
Se
as nossas salas de teatro não estivessem vazias este espetáculo, a € 35 a
cabeça, nunca seria uma afronta, assim como nos é apresentado é-o para todos os
profissionais que tentam sobreviver através desta arte e que cada vez menos têm
como o fazer de um modo digno. É mais um sinal de que a nossa cultura se
encontra de rastos, e este espetáculo em nada se distingue dos concertos
festivais-de-verão onde nos é pedido que andemos a pular de um lado para o
outro sem que nos foquemos em nada em particular. Vendem-nos tudo mas na
realidade recebemos pouco em troca, fica só a sensação de algo incompleto ou amputado,
e neste caso não foi um membro foi mesmo uma parte do nosso cérebro ao qual é
exigido cada vez menos em troca da adrenalina do momento, digamos que o
apuramento da técnica perfeita de lobotomia como o professor Egas Moniz nunca
imaginou ser possível.
Nota:
Há um teatro sediado em Tomar – “Fatias de cá” - que faz este tipo de encenação
há anos por isso nem pela originalidade podemos ser conquistados.
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