sexta-feira, 30 de maio de 2008

Rotten Oranges


A política é um fenómeno curioso, repleto de acontecimentos que se na maioria das vezes não são garantia de convergirem no sentido de servir melhor o cidadão comum, têm pelo menos a vantagem de poder entreter esse mesmo cidadão, quando ele opta por sorrir em vez de se deixar exasperar. A exasperação pode ser lida nas crónicas de Vasco Pulido Valente, mas na nossa capacidade de sorrir dependemos quase e sempre só de nós. A corrida à presidência de um importante partido nacional tem-se revelado como um maná de situações caricatas a começar pela figura do ex-presidente, passando pelos candidatos que avançaram e acabando no futuro pouco risonho mas pleno de sorrisos, muitos amarelos, que o final desta estória vai permitir. Temos então na corrida uma múmia, um lázaro e um político de carreira todos a competirem pelo mesmo lugar (os outros nem contam, por muito que o quisessem); paralelamente tínhamos uma criatura boçal, que foge a qualquer espécie de classificação, mas que nunca chegou a ser validada porque só ameaçou dizendo que ia concorrer para logo depois se arrepender dizendo que não sabia se iria e na realidade nunca foi.
A múmia possui um ar de austeridade bacoca que corre o risco muito téneu de ser confundida pela verdadeira austeridade, e para alguns autoridade, porque é sabido que as múmias já não são capazes de mudar de expressão facial, isto pelo facto inerente à mumificação, que no presente caso vai para além daquilo que se aprendeu com a civilização egípcia, e pode-se mesmo falar numa mumificação da alma e das ideias. Ainda ninguém se lembrou de uma palavra de ordem eficaz do tipo “Múmia ao poder” mas todos desconfiam que o poder das múmias está um bocado condicionado, claro que se corre sempre o risco da maldição da múmia no entanto esse tipo de maldições só tem efeito se a múmia ficou muito tempo encerrada no sarcófago o que não é o caso desta que tem andado por aí à solta a perder pedaços de gaze como quem não quer a coisa.
O Lázaro é reconhecido pela sua capacidade de ressurreição, induzida ou não, mas infelizmente tem um prazo de validade curto, isto é limitado a uma ressurreição por vida, mais do que uma torna-se arriscado e geralmente tem como resultado a perda de órgãos vitais quando da segunda ou terceira ressurreição; neste caso percebe-se logo à primeira observação qual foi o órgão vital que ficou por reanimar e só mesmo quem já não o possua poderá falhar esse reconhecimento. “Lázaro ao poder” mas com que órgãos vitais? Essa questão iria assombrar os potenciais eleitores que geralmente só acreditam num milagre à primeira.
O carreirista político é aquele que pode dar mais frutos mas a nós, comuns mortais, de pouco nos servirá porque está à vista de todos o que é um político de carreira, temos um primeiro-ministro com essas características, e o resultado é óbvio, uma política míope, que anda a reboque das notícias que abrem os jornais, televisivos e outros, e que não possuí qualquer profundidade ou visão. Uma mais valia deste carreirista de fundo é ter uma voz bem colocada, sempre resulta melhor no telejornal e pode servir para embalar o povo, nunca pelo conteúdo mas talvez pelo tom, assim de mansinho como se querem as coisas neste país.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Beggining to End


No início desta peça, de Samuel Beckett, é-nos apresentada a imagem do palhaço pobre que poderíamos ver num qualquer circo de província com o cabelo penteado em triângulo, feições marcadas por esgares cómicos que se tornam soturnos, sapatos demasiado grandes e uma roupa velha, gasta e cheia de pó. Este palhaço é um pouco mais triste do que os outros, e essa tristeza é mais humana e quando nos faz rir deixa-nos sempre um sentimento de culpa, porque nos faz rir da tragédia do que se vislumbra ser, ou ter sido, a sua vida. Este é um palhaço que não teria lugar nem nos circos tradicionais nem naqueles mais modernos cheios de espectaculares acrobacias. É um palhaço estranho que só está bem na realidade, embora quase tudo nele pareça irreal e derivado de um pesadelo com o qual se conformou e que ele está decidido a viver até ao fim; um fim que ele escolhe, ou julga escolher.
Um palhaço que anuncia a sua morte no início do espectáculo, e que no nosso esforço de catalogar poderíamos pensar ser um mendigo meio louco daqueles com os quais imaginamos podermo-nos cruzar numa grande metrópole. Mas à semelhança do que aconteceria se com eles decidíssemos conversar, vamo-nos apercebendo que sim, ele é um mendigo, sim ele até pode ser semi-louco mas a sua lucidez por vezes deixa-nos encadeados porque de entre um discurso que parece fragmentado e pouco lógico, vão surgindo ideias que nos assombram e sobre as quais sabemos que nunca havemos de ter uma resposta. Neste caso a ideia do fim, mais precisamente da morte e Beckett até fala através da personagem da possibilidade de algo para além desse fim mas é uma visão onde só existe a perspectiva da continuação dos mesmos rituais, onde se vão perpetuar as mesmas discussões familiares, alimentar as mesmas agruras, mas desta vez gritadas do Inferno para o Céu, este último um local de onde a personagem sabe que foi erradicada.
Outro tipo de morte anunciada no texto tem a ver o com a possibilidade de os deuses nos brindarem com múltiplas vidas e de nós cometermos sempre os mesmos erros, vivermos sempre do mesmo modo, com pequenas variações, que em nada contribuiriam para alterar o resultado final. Razões suficientes para que este palhaço Beckettiano e niilista anuncie que teria preferido ficar toda a sua vida numa sala tendo apenas por companhia um relógio para marcar o tempo, sendo esse mesmo tempo preenchido a dormitar, recostado num sofá, à espera da altura certa para fazer subir os pesos que permitiriam ao relógio continuar a sua corrida na direcção do infinito.
O actor, João Lagarto, sozinho em cena cumpre muito bem a leitura do texto que também traduziu e encenou. Por vezes existe uma intromissão do actor que pode resultar como sendo destrutiva da concentração do espectador, mas até isso é muito bem disfarçado pois a fragmentação do texto permite-o e presta-se a algum improviso; no entanto na minha leitura, e por isso mesmo, o texto deveria ser trabalhado de um modo mais ortodoxo. Este facto não desvirtua em nada o trabalho do actor e até serve para ligar de um modo mais profundo a personagem do palhaço à do ofício de actor, acrescentado desse modo uma auto-ironia que se associa muito bem com as palavras inventadas pelo dramaturgo irlandês.