domingo, 11 de outubro de 2015

Clássicos Gregos Para Totós




Fiz questão de assistir à trilogia inspirada no teatro grego clássico e que deu início à nova temporada do D. Maria II. Já escrevi sobre a primeira das peças adaptadas por Tiago Rodrigues, Ifigénia, faltam ainda as outras duas, Agamémnon e Eléctra. O que sobrou dos textos dos autores dos clássicos originais é um espectro desses cânones literários, mas apesar de ser um flébil espectro não perde a capacidade de nos assombrar o presente. O encenador, e agora também director do Teatro Nacional, assume a imperfeição das suas adaptações mas nessa imperfeição não podemos deixar de perceber um movimento que pode ser muito útil à sobrevivência do teatro tal como o conhecemos. As adaptações, alimentadas pela urgência do tempo, não deixam de ser veículos muito eficazes de transporte da mensagem original dos textos que as inspiraram. Eurípedes, Sófocles e Ésquilo são os autores gregos das peças originais e ao longo dos tempos foram lidos, representados e adaptados pelas mais variadas gerações e épocas. Podemos ver essas peças subir ao palco vestindo as palavras originais, quem sabe se no grego antigo, ou assim com se viu no palco do D. Maria II. Ambas as apostas são arriscadas, ambas podem falhar, mas ninguém pode acusar os atores, que se empenharam em as trazer de volta de, pelo menos, não terem tentado.

Pessoalmente gostei do risco assumido por Tiago Rodrigues, acho que as histórias que habitam estas peças devem ser conhecidas do grande público, que os nomes destas personagem devem ecoar nos palcos dos nossos teatros, que as pessoas devem saber que Electra, antes de ser uma personagem da Marvel, já foi uma mulher que habitou a Grécia antiga e que deixou marca na memória poética dos homens.


As peças são-nos apresentadas segundo uma lógica cronológica e têm em comum o facto de serem todas tragédias. Sobre Ifigénia já escrevi e deixámo-la no altar do sacrifico como moeda de troca por ventos favoráveis às embarcações helénicas que foram à conquista de Tróia e do resgate da bela Helena. Agamémnon fala do regresso desse herói da guerra de Tróia, de uma mãe que se quer vingar da morte da filha e de um amante ambicioso que conspira para alimentar o desejo de vingança de uma mãe que nunca deixou Aulis, tendo ficado presa à memória do sacrifício da sua filha e que por isso nunca conseguiu perdoar o marido, Agamémnon.


A liberdade dramaturgica que o encenador deu aos atores é visível e o trabalho de bastidores que envolveu a leitura do texto e a sua interpretação manifesta-se, tanto nos bons como nos maus momentos. Este trabalho deveria ser aproveitado para, com os mesmos atores, colocarem em cena os textos originais. Seria como observar a construção de um belo edifício a partir das suas fundações até à sua estrutura final e julgo que todos nós sairíamos a ganhar com essa aposta.

Tiago Rodrigues poderia ter sido ainda mais ousado e num derradeiro passo, que iria com toda a certeza irritar os que se acham detentores das produções de teatro clássico em Portugal e arredores, dar outro nome às peças ou talvez um sub-titulo em virtude da personagem que acabou por se destacar mais na adaptação da peça. No caso de Agamémnon é sem duvida Cassandra quem rouba todas as cenas, não só porque Isabel Abreu desempenha um papel magnífico, mas também porque se percebe que é naquela voz, que nos fala de um futuro no qual ninguém acredita, que se centra todo o drama das outras personagens. O mesmo acontece com Eléctra que na realidade se deveria chamar Orestes porque Miguel Borges consegue suplantar a interpretação de Flávia Gusmão (Eléctra) que nos apresenta uma caricatura de Eléctra muitas vezes superficial e a roçar o mau gosto teatral. Há momentos em que parece que a actriz fez uma associação básica entre Eléctra e guitarra eléctrica, e não estou a brincar porque existem sérias evidências desse facto. Eléctra conta-nos a terceira parte da história na qual a filha de vinga da morte do pai conspirando com o irmão, Orestes, para matar a mãe, Clitemnestra.


No seu conjunto foram três horas e meia bem passadas, imperfeitas, mas que naquilo que é essencial cumpriram o seu objetivo. Acredito que muitas das pessoas que lá estavam ficaram curiosas sobre aquelas personagens e com vontade de saber mais sobre elas, quem sabe até lerem os textos originais. Por essa razão, e para cumprir a sua missão de teatro nacional, talvez fosse útil encenar estas peças na sua versão original, tenho a certeza que quem foi ver estas versões truncadas iria com toda a certeza arriscar na leitura mais canónica destes dramas, conquistando-se assim público para uma arte que não se quer moribunda e que se deseja viva e de boa saúde.

sábado, 12 de setembro de 2015



Ifigénia em Áulis, ΙΦΙΓΕΝΕΙΑ Η ΕΝ ΑΥΛΙΔΙ, está identificada como a última tragédia de Eurípedes tendo sido estreada no ano de 450 a. C. e julga-se que apresentada já depois da morte de Eurípedes, encenada já não pelo dramaturgo grego mas pelo seu sobrinho.
No meu caso a primeira vez que ouvi falar nesta tragédia foi através da ópera homónima de Gluck, estreada em França no ano de 1774, inspirada numa peça dramática de Racine, tendo sido esta última suportada na obra original de Eurípedes. Na altura fui logo alertado que o final da ópera era feliz ao contrário do que acontece na apresentação do drama original. O público do século XVIII não queria ir à ópera para ver finais infelizes e por isso Gluck satisfez essa vontade contribuindo para umas voltas extra nos túmulos de Racine e Eurípedes. No caso da ópera, Ifigénia acaba por ser salva pela deusa Diana e casa com Aquiles, no drama de Eurípedes acaba degolada e sacrificada no altar que não do casamento. Num dos finais, possíveis, da peça de Eurípedes também surge a possibilidade de Ifigénia ser salva por Diana, não para que esta despose Aquiles, mas para a tornar sacerdotisa em Taurina onde, segundo algumas fontes, se irá reencontrar com o seu irmão Orestes. Mais uma vez Gluck musica este drama, Iphiegénie en Tauride, que pouco tempo depois será reescrito pela pena de Goethe. 
Ifigénia em Áulis, apresenta-nos uma história que em linhas gerais é simples mas de consequências profundas e dramáticas. Em Áulis espera-se por ventos auspiciosos que permitam levar os exércitos até Troia para resgatar a bela Helena, esposa de Menelau, que foi raptada por Páris. Agamémnon, irmão de Menelau e Rei de Argos, é quem convoca os exércitos para levar a cabo tão ambiciosa empresa, vem tudo descrito na Ilíada de Homero, mas neste drama teatral foca-se nesse momento em que surge um impasse alimentado pela natureza, a ausência de ventos, cuja consequência é os exércitos ficarem semanas à espera de uma guerra que tarda até que a situação se torna insuportável. Consulta-se então um oráculo que exige o maior dos sacrifícios em troca dos desejados ventos, Agamémnon deverá sacrificar aos deuses a sua filha, Ifigénia, para que os ventos regressem à baia Áulis, para que os Gregos possam embarcar e consumar aquela que veio a ser conhecida como a guerra de Troia. O drama centra-se então na escolha de um homem que se encontra dividido entre o seu dever de rei e o de pai. Claro que extravasa para além disso, e deixa expostas todo o tipo de ambições e desejos de quem rodeia a família real, e vamos poder ver em cena desde os mais nobres sentimentos, Aquiles, até aos mais vis e egoístas, Menelau, a dor de uma mãe, Clitemnestra, e todo um espectro de emoções ao qual ninguém poderá ficar indiferente.
Tiago Rodrigues decide arriscar e fazer uma leitura pessoal sobre esta tragédia grega respeitando o drama na sua essência, transporta-a até nós, espetadores sentados confortavelmente no século XXI, a muitos anos de distância de uma história que achamos que não nos diz respeito, e desse modo apanha-nos desprevenidos e quando menos esperamos percebemos quão universal é este drama e quão próximo da nossa história atual ele se encontra.
É  uma visão de profundo respeito e entendimento sobre o que é o teatro e de como ele pode ser vivido neste nosso presente. A adaptação consegue resgatar aquilo que é essencial neste drama de Eurípedes e trazê-lo para perto de nós, fazê-lo sentar-se ao nosso lado e perceber que este drama grego poderá não estar tão longe da Grécia que vemos agora nas notícias, que os dilemas humanos vividos podem não ser os nossos mas ecoam emoções cuja ressonância não nos deixa indiferentes. Esta adaptação/visão de Tiago Rodrigues consegue isso tudo graças também a um conjunto de atores muito equilibrado, com destaque para a Clitemnestra da Isabel Abreu. A exceção terá sido alguns elementos do coro, que inundaram as palavras de gestos demasiado intrusivos, desequilibrando um pouco o espetáculo.  

É a primeira temporada em que esta equipa se encontra à frente do Teatro Nacional D. Maria II e não posso deixar de achar auspicioso o modo como a iniciam demonstrando um conhecimento e amor pelo teatro que só pode contribuir para uma reaproximação do público por esta arte tão importante para o tecido cultural da nossa sociedade. Estamos perante uma visão global, inteligente, emocional e que não tem medo de correr riscos contribuindo assim para um teatro vivo, não o deixando esquecido e de salas vazias como tem acontecido nos últimos anos. Ontem a sala estava cheia e espero que assim continue por muitos anos e que este seja o prenúncio de uma longa e próspera relação entre nós e o novo Teatro Dona Maria II



quinta-feira, 25 de junho de 2015




Jardins de Cristais - Química e Literatura
Sérgio Rodrigues

No posfácio o autor confessa: " Muitos livros e referências foram lidos de uma forma apressada, facto pelo qual peço desculpa." E nós como leitores até o poderíamos desculpar se essa leitura apressada não tivesse um tão grande peso ao longo dos vários capítulos que constituem o livro. 
São vinte e dois capítulos que não passam, na maioria das vezes, da catalogação de referencias literárias extraídas de trabalhos de outros autores, quase sempre sem uma articulação eficaz  e  que por essa razão põem em causa a fluidez da leitura. Fazia muito bem ao autor ler os clássicos que cita, mas lê-los de uma forma profunda de modo a melhorar a densidade da sua escrita que sofre de volatilidade crónica.
Embora as razões expostas anteriormente possam tornar penosa a leitura do livro tal não me impede de congratular o autor pela tentativa de nos aproximar da Química através de uma via que considero fundamental para a sobrevivência de qualquer disciplina cientifica, isto é, sustentada numa visão complementar de outras áreas do conhecimento humano, neste caso a literatura, e se possível incluir também todas as outras. O autor lança uma ideia que nos alerta para a invisibilidade da Química num mundo onde ela se encontra presente em tudo o que nos rodeia. O autor sugere que talvez seja uma questão de marketing cientifico, numa sociedade onde os soundbits são a única coisa que se fixa na nossa memória, e quanto mais superficiais e atraentes mais eficazes. A Química poderia produzir soundbits destes a cada fracção de segundo com a única diferença de que nunca seriam superficiais porque lidam com temas que tocam o cerne daquilo que mais importa para conhecer melhor o mundo que nos rodeia.  
É um livro incompleto principalmente no que diz respeito a referências literárias ligadas com o teatro. É certo que são referidos Shakespeare e Strindberg mas faltam muitas peças de teatro contemporâneas cuja importância e impacto justificariam, por si só, um capitulo à parte. A única excepção é "Oxigénio: uma peça de teatro" de Djerassi e Hoffmann que depois nem surge referenciada na bibliografia do capitulo a que diz respeito. Talvez porque o autor não a tenha lido.
Eu desejava que este livro fosse mais maduro, que reflectisse um tipo de cultura cientifico-literária que tem poucos seguidores em Portugal. Na atualidade estou  a lembrar-me de Jorge Calado,  mas a estagnação é evidente e este livro só poderia sofrer desse mal. 

No entanto, e apesar das suas fragilidades, é bem-vindo e deveria servir de exemplo para outros escrevem sobre este tema, em Química, e já agora também noutras áreas cientificas. Todos ficaríamos a ganhar e os tais soundbits, de que a ciência tanto necessita, sairiam reforçados e com um poder ampliado. 

Nota: As capas dos livros de divulgação científica sofrem, na sua maioria, de falta de criatividade e originalidade e esta é mais uma vez exemplo disso.

quinta-feira, 28 de maio de 2015


Lobotomia: uma história de amor




E Morreram Felizes Para Sempre” é um espetáculo que me trouxe à memória a casa assombrada que há uns anos poderíamos encontrar na defunta Feira Popular, onde atores recriavam ao vivo cenas de terror (teatro imersivo?) ou a minha visita ao parque da Universal Studios, na Califórnia, onde fui encontrar uma versão ampliada da mesma casa assombrada mas com referencias fílmicas específicas, resultantes das produções dos filmes de suspense e horror deste estúdio de Hollywood. Não consigo decidir se é bom ou mau mas afasta-me definidamente daquilo que considero teatro, mesmo num sentido não muito restritivo do termo.
Desde que me conheço que gosto e frequento teatros, pelo teatro, e já o vi representado sob muitas formas mas que na sua essência respeitavam alguns dos princípios básicos que nos permitem identificar um espetáculo como sendo teatral. No entanto, neste caso, a tarefa torna-se complicada. Tudo é demasiado superficial para que possa ser considerado mais do que um competente anúncio de televisão, sobre o qual não devemos, nem interessará, pensar muito profundamente. Se o princípio que sustenta o espetáculo, a este nível, até pode ser considerado aceitável quando inspecionado mais profundamente, em termos teatrais, revela-se um desastre absoluto.
As ideias encontram-se tão soltas como a ligação dramática entre as várias cenas que só podemos acompanhar se nos dispusermos a correr, literalmente, de um lado para o outro, fixando-nos numa das personagens ou indo ao sabor das nossas decisões do momento. As ideias avulsas que encontramos seriam ótimas para vender o último champô ou desodorizante do mercado mas em termos dramáticos valem muito pouco. Talvez ajude a clarificar se fizer um resumo da sinopse, que vai buscar inspiração à muito lusitana estória de amor malfadado de “Pedro e Inês”. Como o espaço onde foi dramatizado este espetáculo é um hospital, em particular um hospital psiquiátrico, junta-se à estória de Pedro e Inês a da técnica de lobotomia de Egas Moniz, agita-se bem e espera-se que cole, mas infelizmente não cola. Cedo se percebe que o foco principal nem sequer é contar uma estória ou permitir que os espectadores se deixem envolver e emocionar por essa estória, o foco principal é criar ambientes em micro-palcos espalhados ao longo de mais de vinte salas e onde se exige um nível de concentração próxima de zero, como é apanágio de uma cultura televisiva cada vez mais dominada pelo zapping, o qual se tornou o exercício intelectual mais decisivo?) ou a minha visita da vez dominante o zapping se tornou o principal exercício nossas decisivo?) ou a minha visita praticado por esse mundo fora. A dança é assumida como o principal meio de comunicação neste espetáculo mas falta-lhe a dimensão da palavra, senão que teatro é este? Até no teatro-dança de Pina Bausch encontramos a palavra. As poucas vezes que a voz é ouvida é sob a forma de grito ou trasvestida de um playback manhoso e quase patético.
Como não somos presos pelo lado emocional acabamos por deixar vir ao de cima apenas o ser racional que no seu estado puro é quase tão brutal como o irracional e só conseguimos ver fórmulas gastas em todo o lado: os enfermeiros maléficos, a mulher louca, o piscar de olhos ao universo gay, pois Pedro, que neste caso é médico e sim Inês é enfermeira!, não só se apaixona por outra mulher, que não a sua esposa, como mantém uma relação com outro enfermeiro, o bom, (não, isto não é a Anatomia de Grey...) , na ausência de palavras usa-se o som estridente para confundir os sentidos, pede-se a um ator que faça nu integral, e um rol de clichés que nem vale a pena catalogar.
Se as nossas salas de teatro não estivessem vazias este espetáculo, a € 35 a cabeça, nunca seria uma afronta, assim como nos é apresentado é-o para todos os profissionais que tentam sobreviver através desta arte e que cada vez menos têm como o fazer de um modo digno. É mais um sinal de que a nossa cultura se encontra de rastos, e este espetáculo em nada se distingue dos concertos festivais-de-verão onde nos é pedido que andemos a pular de um lado para o outro sem que nos foquemos em nada em particular. Vendem-nos tudo mas na realidade recebemos pouco em troca, fica só a sensação de algo incompleto ou amputado, e neste caso não foi um membro foi mesmo uma parte do nosso cérebro ao qual é exigido cada vez menos em troca da adrenalina do momento, digamos que o apuramento da técnica perfeita de lobotomia como o professor Egas Moniz nunca imaginou ser possível.

Nota: Há um teatro sediado em Tomar – “Fatias de cá” - que faz este tipo de encenação há anos por isso nem pela originalidade podemos ser conquistados.

sábado, 9 de maio de 2015

The Unicorn - Iris Murdoch


O quarto livro foi The Unicorn de Iris Murdoch e aqui está uma escritora que se encontra condenada a não me desiludir. Não lhe posso adjetivar a escrita com elogios suficientes, é daquele tipo de escritor que nos faz desejar escrever como ela. A densidade literária é perfeita, o balanço entre o desenvolvimento dramtico do romance am´to dramrnos dias que correm, me fazem sentir desse modo um sistema reacional atático do romance e o ritmo de introdução das personagens não pode estar mais afinado, e este livro é um exemplo acabado disso mesmo. Marian Taylor, os olhos através de quem nos é introduzida a estória, aceita um lugar de perceptora num castelo situado num lugar distante, na costa inglesa, e o livro começa com a sua chegada a uma desolada paragem de comboio no meio de nada.  A partir desse momento sabemos que está para acontecer algo que vai transformar esta personagem para sempre, e de tal modo que a determinada altura do romance temos que abandonar o seu olhar e focarmo-nos no de outras personagens, nunca com grande sucesso porque as sombras e os contornos poucos nítidos que crescem à nossa volta são demasiado voláteis e misteriosos para poderem ser apanágio de uma só criatura. Ficamos com Marian o tempo suficiente para nos apercebermos do abismo que a rodeia, um abismo sob a forma de uma mulher que é também a dona da casa, uma beleza aristocrática decadente que, suspeitamos, se mantém viva através de whisky e que quase nunca sai do seu castelo. Ali por perto assombra-nos o mar que Marian cedo percebe ser tão indomável como a força que a vai puxando para o centro do mistério que é aquela mulher e de tudo a que a envolve. Mais de metade do livro lê-se quase ao ritmo de um romance policial e depois a espiral de acontecimentos, aqueles que verdadeiramente têm velocidade e impacto, parece que surgem para desacelerar a estória tornando-a mais pesada e difícil de suportar. Há apenas um senão um momento desnecessário em que Iris Murdoch decide educar o leitor através de uma lição pífia de filosofia por via de um diálogo, ao estilo platónico, entre uma das personagens principais e uma outra secundária, e que não acrescenta nada ao livro. As lições de filosofia já lá estavam antes deste formalismo que, no entanto, se esquece rapidamente por estarmos perante uma escritora tão talentosa. Se tivesse que resumir este livro diria, como uma das personagens o sugere, que é  uma versão adulta de um conto de fadas bem conhecido, a bela adormecida, mas com um final muito trágico e infeliz.

sexta-feira, 8 de maio de 2015



O terceiro livro, Offshore de Penelope Fitzgerald, foi premiado com o Booker Prize (1979) quando estes prémios ainda podiam ser olhados como gestos de apreço entre iguais e antes de se tornarem num golpe de marketing que todas as editoras querem colocar na badana do seu último, e efémero, êxito literário.
Esta edição vem com um prefácio escrito por Alan Hollinghurst, autor do excelente The Line of Beauty, e esse é um complemento que se deseja mas do qual eu só usufrui depois de terminar o livro, é prefácio e como tal julgo que correria poucos riscos mas mesmo assim não quis contaminar a minha leitura com a visão de outro.
Fitzgerald é um daqueles autores que chegam tarde ao mundo literário, começou a publicar perto dos sessenta anos de idade, e em vinte anos publicou nove romances, três biografias e múltiplos ensaios e críticas. Nem todos os génios são como Rimbaud, existem estes que se revelam tarde e conta a estória que parece que se fixam melhor na linha do tempo e que perduram melhor na memória literária. A ver vamos se é esse o caso desta escritora que para já revela possuir todos os sinais que assim o indiciam, a escrita é cristalina e as personagens que a habitam são imperfeitas como se deseja quando se quer retratar o profundamente humano. Fitzgerald buscou quase sempre inspiração na sua vida pessoal e este livro não é exceção e retrata a vida de um grupo de indivíduos que vive em barcos-casa que se encontram atracados no porto de Battersea, em Londres.  São todas personagens imperfeitas porque ainda não consumaram a transição de seres marítimos para criaturas terrestres, uns vivem na ansiedade de o fazerem outros presos ao medo do dia em que essa transição será definitiva. Por enquanto são água e olham-se no espelho imperfeito que a água lhes devolve, encontramos nesses barcos um prostituto que engata os seus clientes num pub ali por perto, um ex-oficial da Marinha e a sua mulher, uma mãe com as duas filhas menores e que espera o regresso do seu marido, um pintor de paisagens marítimas e outras personagens mais ou menos menores. Tudo se passa no início dos anos 60 e não deixa de ser impressionante o modo como Fitzgerald consegue captar esse momento que é uma espécie de terra de ninguém, pois ocorre depois de uma grande guerra e mesmo antes da revolução cultural e social dos finais dos anos da década que retrata. Essa pausa no tempo lê-se nas personagens, mas com uma mestria própria de um grande escritor Fitzgerald deixa-nos vislumbrar as fissuras que enraízam as personagens aos seus tempos reais, umas escolhem o passado outras o futuro, e dessa ténue linha nasce um equilíbrio dramático que sustenta o livro e onde é por demais evidente que todos são demasiado humanos para não falharem, mais uma vez e sempre.


quarta-feira, 6 de maio de 2015

Quadrimestre – Cinco leituras para quatro meses




Este ano teve início com Gilead de Marilynne Robinson um livro sob a forma de epístola, uma carta escrita por um pai a um filho que sabe que não vai ver crescer e com quem não vai poder partilhar uma experiência de vida cujo lastro se sabe perdido, mas que este pai quer deixar como herança ao filho que lhe vai sobreviver conquistando um pouco mais de tempo. Robinson é mestre de uma escrita irrepreensível, embora o tema não pudesse estar mais distante daquilo com me identifico, e relata-nos a estória de um pregador norte-americano, descendente de uma família de homens com as mesma profissão, e cujo olhar nos permite ver de relance a vida numa cidade da América profunda e sentir as ondas de reverberação desse microcosmos naquilo que nos habituámos a julgar como a vida dos verdadeiros descendentes dos colonos norte-americanos, longe da sofisticação dos grandes centros urbanos. A personagem, e a sua profissão, podem estar distantes daquilo com que me identifico mas o contorno da sua vida e os problemas mais fundamentais com ela se depara encontram-se muito próximos das minhas ansiedades cujo eco e síntese encontrei nesta frase “Every single one of us is a little civilization built on the ruins of any number of preceding civilizations, but with our own variant notions of what is beautiful and is acceptable – which, I hasten to add, we generally do not satisfy and which we struggle to live.”  Aqui encontramos o potencial de todo o drama humano, a luta perdida entre o que desejamos ser, em toda a sua dimensão estética e moral, e aquilo que somos na realidade. Estamos todos sujeitos a esta frustração e o grau do nosso sucesso e realização, como seres humanos, depende em grande parte da convivência pacífica com este olhar, por vezes cruel, que nos é devolvido pelas sombras imperfeitas dos nossos gestos.

O livro seguinte Orfeo de Richard Powers, prometia-me mundos e fundos, a começar pelo título cujo tema me deixa sempre curioso e alerta. A ideia original é muito boa, e agora aconselho os leitores mais sensíveis a desviarem o olhar (caso não queiram que vos estrague a leitura do livro), um professor de música reformado, que também é compositor, e nos tempos livres decide manipular geneticamente uma bactéria aparentemente inofensiva com o objetivo de deixar impresso no seu DNA um código musical que ela irá repetir por toda a eternidade. Powers relembra-nos que vivemos numa época de histerismo global, sobre terrorismo e ataques terroristas. A paranoia coletiva ajuda a que sejamos levados a pensar que o nosso inimigo poderá ser o nosso vizinho ou, pior ainda, alguém da nossa própria família; ninguém é inocente nesta sociedade Kafkiana imersa num tipo de tecnologia que é o sonho tornado realidade da ficção, cada vez mais próxima, descrita em 1984 de George Orwell. Nestas condições todos somos culpados inclusive um inocente reformado que faz manipulação genética na sua casa de subúrbio, claro que este mais culpado que os outros porque ousa querer mudar o mundo através de uma pequena ideia poética mas que rapidamente se torna subversiva, primeiro aos olhos dos outros e depois aos olhos dele próprio. O livro oscila entre uma história da música contemporânea suportada numa estrutura de romance, aqui entenda-se no sentido literal do termo, que na maioria das vezes não funciona. É notório que o autor se encontra dividido entre nos apresentar um conhecimento enciclopédico mas ao mesmo tempo sublinhado por uma relação de afetos que a personagem que criou vai estabelecendo ao longo da sua vida. Infelizmente nunca consegue que o livro levante voo na direção certa, seja ela qual for, porque se pressente que tudo está clinicamente ensaiado e feito num laboratório de luz fria e asséptica onde poderemos encontrar os catálogos de todas as emoções mas nunca as emoções propriamente ditas. É como olhar para uma pauta que podemos ler nota a nota, sem erros, mas de cuja leitura nunca sairá o contorno emotivo que se encontra para lá da contagem perfeita dos tempos marcados na pauta e que é a verdadeira essência da música.


[Continua]