sexta-feira, 14 de março de 2014

Fuckylorí



Quem sabe se à semelhança do fado a revista não será novamente um local onde se vão descobrir novos talentos a cada pontapé na calçada. Tem todos os ingredientes para que assim seja: floresceu à luz do antigo regime, pode ser muita parra e pouca uva, é o meio ideal para catapultar grandes artistas de duração muito limitada, como já acontece com o fado, e até se parece com as redes sociais lançando piadas inconsequentes, sobre assuntos mais ou menos sérios, que nos deixam a pensar que devemos ser pessoas muito modernas porque temos a capacidade de nos rirmos da nossa, quase sempre, triste condição de ser português e de sermos governados pelos piores de entre os portugueses. Depois perdemos a memória do ridículo, assobiamos para o lado e continuamos a aceitar que tudo seja possível, da revista ficará a memória de um serão bem passado cujos quadros afinal não passam de uma hipérbole da realidade, que no fundo não é assim tão má.
Nunca se pode saber o que vai acontecer com este centenário género teatral mas infelizmente o meu pessimismo não me permite acreditar que a Revista possa vir a ser o novo Fado, quanto mais não seja por razões logísticas pois implica grande um investimento monetário e intelectual que poucos se atreveram a tentar materializar, nesta época de vacas magras. No entanto, poderia argumentar que essas seriam precisamente as verdadeiras razões que poderiam fazer ressuscitar a Revista, claro que não seria aquela que habitou o Parque Mayer mas uma descendente de aparência mais pobre mas com todo o potencial de ser uma rica farpa no nossa sociedade zombie, como é sugerido no espetáculo “Tropa-Fandanga” pelo Teatro Praga e que está em cena até ao próximo dia 16 de Março no Teatro Nacional Dona Maria II.
Esta revista, ou espetáculo homenagem à revista, é obviamente muito pós-Moderna povoada de muita autocritica, autoflagelação, autocomiseração e um quadro a condizer no qual os autores tentam explicar o porquê do seu ressurgimento rogando encarecidamente à Sô Dona Revista que os abençoe. Este não será o quadro mais bem conseguido mas outros há que justificam uma visita ao Dona Maria II. A joia da coroa é, sem dúvida, o quadro em que nos é apresentada uma Fátima de pedestal e os seus três pastorinhos, e onde se sugere a conquista do mundo por via de um “Fucklorí” musical em vários géneros e línguas. Afinal o tema principal desta Revista é a guerra e um conjunto de soldados, a tropa fandanga, que tenta reconquistar a portugalidade, revisitando, a nossa história e aquilo que nos fomos tornando ao longo dos tempos, e que tanto aparece caricaturado no jovem casal que frequenta o centro comercial ao fim de semana, como no escritor revelação dos tempos modernos ou nas tias frívolas das malas Chanel. Tudo alvos fáceis, como se espera da Revista, mas notam-se ausências de peso, que surgem(?) de modo tão velado que é como se lá não estivessem, a saber: o primeiro ministro, o presidente da república, o Sr. Relvas ou a Dr.ª Dona Cavaca. Aparece um Sócrates que sendo o original remete-nos para o dos nossos tempo. Mas o Sócrates de Paris está tão batido que já nem este infeliz Governo o usa como desculpa, ou piada, sobre os males da nação, como tal talvez já não devesse contar, ou a contar teria que estar acompanhado, por exemplo, por alguém da estatura irrevogável do Almirante ou Vice-Rei Paulo Portas. Outra ausência de peso de uma Revista que começou por se anunciar como uma  revisão dos tempos, do último ano que passou, mas também dos tempos que se misturam todos uns com os outros (o cínico que há em mim pensou: que conveniente...), é a ausência de Joana Vasconcelos que por momentos eu ainda pensei que era a personagem que encarna em palco a figura da Revista, mas depressa percebi que a única semelhança entre as duas era mesmo só a indumentária. Bom estas são as ausências que eu notei, outras haveria, mas estas deixaram-me a pensar sobre o que é preciso fazer para vender uma Revista a um teatro Nacional do estado. Resultou neste caso e são umas horas divertidas mas depois apagam-se as luzes, fechamos os olhos e somos confrontados com as ausências e tentamos perceber o porquê dessas ausências e depois percebe-se que estivemos afinal a assistir a uma instalação do medo e que se calhar era esse o objetivo dos criadores deste espetáculo, ok aqui detecto alguma ironia da minha parte. Há um momento sério nesta revista, a repetição do discurso da atriz Joana Manuel sobre o que é ser jovem em Portugal, mas não resulta porque é demasiado assimétrico em relação ao resto do espetáculo, é forçado e parece querer justificar qualquer coisa, talvez a ausência, da essência intelectual, desse discurso no resto da revista?
Pelo meio temos uma excelente homenagem à “guerra” do Raul Solnado, feita pelo José Raposo, tal como só um grande ator a pode fazer, bem feita mas sem nos apagar da memória a prestação original.

Como toda a revista que se preze temos números musicais onde se pressente uma grande cumplicidade entre os músicos e os atores e só por isso já vale pena lá estar para os ouvir. Não há coreografias de plumas, escadarias e coristas de longas pernas mas há um conjunto de cenas de grupo que tentam replicar aquilo que seria essas tais coreografias, de um modo assumidamente desajeitado e surrealista, mas que resulta na perfeição.

sábado, 8 de março de 2014

Orfeu e Eurídice


Refleti um pouco antes decidir escrever este texto porque sei que vai ter um conteúdo pesado mas julgo que esse risco será sempre preferível a continuar a alimentar a mediocridade que insiste em grassar neste país. E medíocre é o adjetivo que classifica o espetáculo ao qual assisti ontem à noite no Teatro Camões.
Fui ver e ouvir “Orfeu e Eurídice” com o espírito limpo de preconceitos sobre a coreógrafa de serviço, Olga Roriz, até porque imaginei que, em última instância, o espetáculo seria sempre resgatado pelas sonoridades imaginadas por Glück e pela qualidade crescente dos bailarinos que formam a Companhia Nacional de Bailado (CNB), sobre este último aspecto não me enganei muito porque este corpo de bailado está cada vez mais sólido e seguro, apresentando um trabalho que se tiver continuidade estará ao nível das melhores companhias da europa. Infelizmente tudo o resto foi um desastre absoluto, a opera de Glück aparece violentamente truncada e é-nos dado a ouvir uma espécie de “Best of” de entre o qual nem se consegue salvar a aria mais famosa, e que ocupa um lugar central nesta ópera, “Che faró senza Euridice”, um canto sobre a perda absoluta de alguém que se ama, e que por isso só pode ser um lamento solitário, foi cantado em coro por um conjunto de vozes masculinas, estilhaçando deste modo toda a dimensão intimista da aria. Não sendo isso suficiente temos ainda o que se passava em palco onde os bailarinos, graças à superficialidade da coreógrafa, expressaram de modo ainda menos intenso um dos mais belos lamentos amorosos do canto lírico.  
Não tenho dúvida que a ideia deste espetáculo teve origem na melhor das intenções nas quais se incluem a celebração dos 300 do nascimento deste magnífico compositor que tão maltratado foi pela personagem de Mozart criada por Peter Shaffer  para a sua peça teatral “Amadeus” , mais tarde adaptada ao cinema por Milos Forman. Na realidade, Mozart e outros compositores ficaram a dever muito à famosa “reforma” musical levada a cabo por este talentoso compositor oriundo da região da Baviera. Se necessitarem de mais alguma confirmação da originalidade deste compositor basta ouvir o disco que Cecília Bartoli dedicou ao seu génio, “Italian Arias”, no qual nos podemos deslumbrar com excertos e arias de óperas que na sua maioria ainda estão por gravar na integra.
À escolha de Glück também não é alheio o facto de na tradição da ópera francesa, que ele seguiu durante grande parte da sua maturidade musical, estarem previstos momentos de bailado que eram integrados na ópera, muito ao gosto do publico francês da época. Mas mais do que isso, toda a música desta ópera em particular, é de uma densidade dramática que apela muito ao sentido do movimento corpo, embalado por melodias inesquecíveis e muito belas. Por essa razão também Pina Bausch a terá coreografado há uns anos atrás tornando esta peça um clássico instantâneo do bailando contemporâneo. Não serve este texto para comprar o incomparável e independentemente do facto de todos sabermos que a Olga Roriz nunca irá passar de uma espécie de discípula de segunda categoria da Pina Bausch, isso não a devia ter impedido de criar um trabalho digno tanto para os bailarinos, que bem o merecem, como para os espectadores que tiveram que assistir a algo que, no mínimo, deveria causar embaraço a qualquer profissional com tantos anos dedicados ao bailado.
Existem muitas variações sobre o mito de Orfeu e Eurídice e não cabe aqui, neste espaço, falar sobre todas elas, no entanto para quem queira saber mais sobre o assunto aconselho a leitura do excelente livro de Ann Wroe “Orpheus – the song of life”.
No caso da ópera de Glück é-nos apresentado um final feliz, tão ao gosto do que era expectável na época de vida do compositor, no entanto Olga Roriz opta pelo relato mais atávico do mito, no qual Orfeu acaba despedaçado pelas bacantes. Nada tenho a apontar sobre esta leitura, ou escolha, e não me choca nada que tenha sido tomada essa opção, choca-me sim o modo como ela o fez, sem imaginação ou criatividade, recorrendo ao óbvio e sublinhando-o com um gesto ridículo que se materializou no descalçar das botas pelas bacantes, botas que depois foram atiradas a Orfeu antes de elas se aproximarem dele para o consumirem, como seria expectável de qualquer bacante que se preze. O óbvio e o ridículo de mãos dados dão sempre o pior dos resultados e foi desse modo que terminou o bailado. Como se não bastasse tudo pelo meio foi desastroso, a proibição de Orfeu olhar para o rosto de Eurídice até à saída dos Infernos tomou a forma de um triste  jogo de cabra-cega, a entrada e saída de Orfeu nos Infernos foi acompanhada por movimentos longos e espaçados do corpo de bailado que estavam mais próximos de uma má passagem de modelos, as bacantes e outras criaturas infernais, quase que se limitavam a abanar a cabeça projetado as suas cabeleiras como se estivesses num concerto de Heavy Metal, o tradicional pax de deux (?!) foi tão morno que não se chega a perceber se Orfeu e Eurídice estão apaixonados ou apenas aborrecidos com a presença um do outro, finalmente algumas cenas de grupo até resultam não tanto pela corrida desenfreada em palco, corrida sem sentido e perceptivelmente sem a marcação de qualquer espécie de emoção, resultando apenas porque o guarda-roupa introduz mais drama ao bailado do que qualquer gesto coreografado por Olga Roriz. Tal diz muito sobre o espetáculo que nunca passou da superficialidade, nunca tocou uma ínfima parte do sentimento encarnado pelo mito de Orfeu, que é um arquétipo universal do amor e da sua perda, perdendo-se mais uma vez a oportunidade de o fazer ressurgir e viver por nós, tantos séculos depois de ter sido imaginado e escrito. 



sábado, 18 de janeiro de 2014

As I Enjoyed It


O Arena Ensemble vai estar até ao fim do mês no Teatro São Luiz com a peça de William Shakespeare “Como Queiram” (As You Like It) uma comédia do dramaturgo inglês que contém um dos textos mais citados de todo o drama isabelino:
All the world's a stage, And all the men and women merely players; They have their exits and their entrances, And one man in his time plays many parts, His acts being seven ages (...)
E sim esta é uma daquelas peças que assume na sua estrutura o micro-teatro das nossas vidas, onde o real se transmuta em simbólico ou os sexos se diluem e se permite que invertam papéis, tão ao gosto da moda teatral da época, onde aliás alguns papéis femininos eram representados por homens. Os papéis por vezes são estereotipados, mas só porque a realidade é demasiado complexa para que a deixemos entrar na representação de uma personagem que não sendo nós, se encontra mais próxima da nossa pele do que aquilo que desejaríamos assumir.
Sobre o texto original já se escreveu quase tudo e muito ainda se irá continuar a escrever porque é uma fonte inesgotável de deslumbramento e de humor cuja fórmula não corre o perigo de se esgotar, nem por imitação ou aproximação por parte de escritores presentes ou futuros. Sobre o sopro de vida dado por este conjunto de atores já vale a pena falar porque é um momento que se fixa no tempo e que não se vai repetir nunca mais, mas essa perenidade é também a sua força porque quem está num teatro sabe isso, tanto de um lado como do outro lado da barricada, e é essa emoção que faz do teatro ao vivo um momento intenso a quem ninguém fica indiferente.
A encenação desta peça está a cargo de Beatriz Batarda que dirige os atores de um modo sóbrio, e competente, que poucas vezes nos deixa perceber as linhas invisíveis do seu trabalho, permitindo um evidente grau de liberdade aos atores cuja qualidade do trabalho dramático é constantemente posta à prova e na maioria dos casos superada. Só não o é no caso do Marco Martins que faz do Duque Frederico uma personagem risível e que é responsável por um desnível, espero que assumido, (talvez para tornar ridícula uma personagem que é pouca amada?) muito grande entre ele e os outros atores em palco. Depois temos o Bruno Nogueira que sendo ator está sempre a representar a mesma personagem, seja lá qual for a peça onde entre, mas que apesar de tudo consegue trazer uma perspectiva nova, que desconfio, seria mais pertinente fora de palco. Talvez ainda venha a ser um grande encenador mas ator de textos dramáticos ainda não.  Não deixa de ser interessante observar uma atriz em cena, Leonor Salgueiro, que é uma versão feminina, mas com alguma preocupação dramática, do Bruno Nogueira.
Estes dois/três atores trazem algum desequilíbrio à peça, no entanto tal é amplamente recompensado pelo facto de os outros serem quase todos brilhantes, e por isso convém destacar o trabalho da Carla Maciel, de Luísa Cruz e Sérgio Praia, tríade que só por si justificava uma ida ao teatro São Luiz, isto pela visível paixão, e entrega, com que constroem as suas personagens e também para observar como as fazem vibrar com uma ressonância dramática muito acima da média. No seu suporte encontramos outros atores que, não estando tão alto, são responsáveis por um competente trabalho dramático, que alguns dirão, ser quase tão importante como aquele que permite aos outros alcançarem as nuvens. Nessa escala intermédia encontramos o Romeu Costa e a Sara Carinhas. Há no entanto um ator que me deixa sempre um pouco confuso quando o vejo em palco, o Nuno Lopes sobre quem nunca consigo decidir a propósito da qualidade do seu trabalho, porque flutua demasiado, indo facilmente do excelente ao medíocre, por vezes no tempo que demora uma fala inteira da sua personagem. 
Mais uma vez a cenografia é insípida e neste caso a desculpa da crise não me parece lógica, o problema aqui é mesmo a falta de imaginação. Ripas de madeira ao alto, semiencobertas de panos branco, mais ou menos bem esticados, sobre uma estrutura em andaime formada pelas madeiras, acrescenta muito pouco à leitura da peça e se é para ser moderno, aviso desde já que cheira um bocado a mofo mesmo antes de sair do papel do cenógrafo para se tornar ideia em palco. Pobreza, ou falta de dinheiro, é uma coisa bem diferente de pobreza de espírito ou preguiça criativa.
Outra coisa que enfraquece a peça é colocar alguns atores a tocar instrumentos em palco, os quais ou eles aprenderam a tocar há pouco tempo ou, pior ainda, para os quais não possuem o menor talento. De que serve colocar alguém em palco a tocar meio acordeão ou a tocar guitarra de uma modo flácido e sem convicção. Também não ajuda muito o facto do compositor (Pedro Moreira) estar limitado a um número reduzido de acordes,  culpa da falta de talento musical disponível, e por essa razão algumas canções se parecerem mais com hinos de igreja cantados ao Domingo por escuteiros que levam pouco a sério a sua fé. No entanto devo salvaguardar que a ideia e construção da canção final é de génio e quase que faz esquecer o desastre de todas as outras.