quinta-feira, 28 de maio de 2015


Lobotomia: uma história de amor




E Morreram Felizes Para Sempre” é um espetáculo que me trouxe à memória a casa assombrada que há uns anos poderíamos encontrar na defunta Feira Popular, onde atores recriavam ao vivo cenas de terror (teatro imersivo?) ou a minha visita ao parque da Universal Studios, na Califórnia, onde fui encontrar uma versão ampliada da mesma casa assombrada mas com referencias fílmicas específicas, resultantes das produções dos filmes de suspense e horror deste estúdio de Hollywood. Não consigo decidir se é bom ou mau mas afasta-me definidamente daquilo que considero teatro, mesmo num sentido não muito restritivo do termo.
Desde que me conheço que gosto e frequento teatros, pelo teatro, e já o vi representado sob muitas formas mas que na sua essência respeitavam alguns dos princípios básicos que nos permitem identificar um espetáculo como sendo teatral. No entanto, neste caso, a tarefa torna-se complicada. Tudo é demasiado superficial para que possa ser considerado mais do que um competente anúncio de televisão, sobre o qual não devemos, nem interessará, pensar muito profundamente. Se o princípio que sustenta o espetáculo, a este nível, até pode ser considerado aceitável quando inspecionado mais profundamente, em termos teatrais, revela-se um desastre absoluto.
As ideias encontram-se tão soltas como a ligação dramática entre as várias cenas que só podemos acompanhar se nos dispusermos a correr, literalmente, de um lado para o outro, fixando-nos numa das personagens ou indo ao sabor das nossas decisões do momento. As ideias avulsas que encontramos seriam ótimas para vender o último champô ou desodorizante do mercado mas em termos dramáticos valem muito pouco. Talvez ajude a clarificar se fizer um resumo da sinopse, que vai buscar inspiração à muito lusitana estória de amor malfadado de “Pedro e Inês”. Como o espaço onde foi dramatizado este espetáculo é um hospital, em particular um hospital psiquiátrico, junta-se à estória de Pedro e Inês a da técnica de lobotomia de Egas Moniz, agita-se bem e espera-se que cole, mas infelizmente não cola. Cedo se percebe que o foco principal nem sequer é contar uma estória ou permitir que os espectadores se deixem envolver e emocionar por essa estória, o foco principal é criar ambientes em micro-palcos espalhados ao longo de mais de vinte salas e onde se exige um nível de concentração próxima de zero, como é apanágio de uma cultura televisiva cada vez mais dominada pelo zapping, o qual se tornou o exercício intelectual mais decisivo?) ou a minha visita da vez dominante o zapping se tornou o principal exercício nossas decisivo?) ou a minha visita praticado por esse mundo fora. A dança é assumida como o principal meio de comunicação neste espetáculo mas falta-lhe a dimensão da palavra, senão que teatro é este? Até no teatro-dança de Pina Bausch encontramos a palavra. As poucas vezes que a voz é ouvida é sob a forma de grito ou trasvestida de um playback manhoso e quase patético.
Como não somos presos pelo lado emocional acabamos por deixar vir ao de cima apenas o ser racional que no seu estado puro é quase tão brutal como o irracional e só conseguimos ver fórmulas gastas em todo o lado: os enfermeiros maléficos, a mulher louca, o piscar de olhos ao universo gay, pois Pedro, que neste caso é médico e sim Inês é enfermeira!, não só se apaixona por outra mulher, que não a sua esposa, como mantém uma relação com outro enfermeiro, o bom, (não, isto não é a Anatomia de Grey...) , na ausência de palavras usa-se o som estridente para confundir os sentidos, pede-se a um ator que faça nu integral, e um rol de clichés que nem vale a pena catalogar.
Se as nossas salas de teatro não estivessem vazias este espetáculo, a € 35 a cabeça, nunca seria uma afronta, assim como nos é apresentado é-o para todos os profissionais que tentam sobreviver através desta arte e que cada vez menos têm como o fazer de um modo digno. É mais um sinal de que a nossa cultura se encontra de rastos, e este espetáculo em nada se distingue dos concertos festivais-de-verão onde nos é pedido que andemos a pular de um lado para o outro sem que nos foquemos em nada em particular. Vendem-nos tudo mas na realidade recebemos pouco em troca, fica só a sensação de algo incompleto ou amputado, e neste caso não foi um membro foi mesmo uma parte do nosso cérebro ao qual é exigido cada vez menos em troca da adrenalina do momento, digamos que o apuramento da técnica perfeita de lobotomia como o professor Egas Moniz nunca imaginou ser possível.

Nota: Há um teatro sediado em Tomar – “Fatias de cá” - que faz este tipo de encenação há anos por isso nem pela originalidade podemos ser conquistados.

sábado, 9 de maio de 2015

The Unicorn - Iris Murdoch


O quarto livro foi The Unicorn de Iris Murdoch e aqui está uma escritora que se encontra condenada a não me desiludir. Não lhe posso adjetivar a escrita com elogios suficientes, é daquele tipo de escritor que nos faz desejar escrever como ela. A densidade literária é perfeita, o balanço entre o desenvolvimento dramtico do romance am´to dramrnos dias que correm, me fazem sentir desse modo um sistema reacional atático do romance e o ritmo de introdução das personagens não pode estar mais afinado, e este livro é um exemplo acabado disso mesmo. Marian Taylor, os olhos através de quem nos é introduzida a estória, aceita um lugar de perceptora num castelo situado num lugar distante, na costa inglesa, e o livro começa com a sua chegada a uma desolada paragem de comboio no meio de nada.  A partir desse momento sabemos que está para acontecer algo que vai transformar esta personagem para sempre, e de tal modo que a determinada altura do romance temos que abandonar o seu olhar e focarmo-nos no de outras personagens, nunca com grande sucesso porque as sombras e os contornos poucos nítidos que crescem à nossa volta são demasiado voláteis e misteriosos para poderem ser apanágio de uma só criatura. Ficamos com Marian o tempo suficiente para nos apercebermos do abismo que a rodeia, um abismo sob a forma de uma mulher que é também a dona da casa, uma beleza aristocrática decadente que, suspeitamos, se mantém viva através de whisky e que quase nunca sai do seu castelo. Ali por perto assombra-nos o mar que Marian cedo percebe ser tão indomável como a força que a vai puxando para o centro do mistério que é aquela mulher e de tudo a que a envolve. Mais de metade do livro lê-se quase ao ritmo de um romance policial e depois a espiral de acontecimentos, aqueles que verdadeiramente têm velocidade e impacto, parece que surgem para desacelerar a estória tornando-a mais pesada e difícil de suportar. Há apenas um senão um momento desnecessário em que Iris Murdoch decide educar o leitor através de uma lição pífia de filosofia por via de um diálogo, ao estilo platónico, entre uma das personagens principais e uma outra secundária, e que não acrescenta nada ao livro. As lições de filosofia já lá estavam antes deste formalismo que, no entanto, se esquece rapidamente por estarmos perante uma escritora tão talentosa. Se tivesse que resumir este livro diria, como uma das personagens o sugere, que é  uma versão adulta de um conto de fadas bem conhecido, a bela adormecida, mas com um final muito trágico e infeliz.

sexta-feira, 8 de maio de 2015



O terceiro livro, Offshore de Penelope Fitzgerald, foi premiado com o Booker Prize (1979) quando estes prémios ainda podiam ser olhados como gestos de apreço entre iguais e antes de se tornarem num golpe de marketing que todas as editoras querem colocar na badana do seu último, e efémero, êxito literário.
Esta edição vem com um prefácio escrito por Alan Hollinghurst, autor do excelente The Line of Beauty, e esse é um complemento que se deseja mas do qual eu só usufrui depois de terminar o livro, é prefácio e como tal julgo que correria poucos riscos mas mesmo assim não quis contaminar a minha leitura com a visão de outro.
Fitzgerald é um daqueles autores que chegam tarde ao mundo literário, começou a publicar perto dos sessenta anos de idade, e em vinte anos publicou nove romances, três biografias e múltiplos ensaios e críticas. Nem todos os génios são como Rimbaud, existem estes que se revelam tarde e conta a estória que parece que se fixam melhor na linha do tempo e que perduram melhor na memória literária. A ver vamos se é esse o caso desta escritora que para já revela possuir todos os sinais que assim o indiciam, a escrita é cristalina e as personagens que a habitam são imperfeitas como se deseja quando se quer retratar o profundamente humano. Fitzgerald buscou quase sempre inspiração na sua vida pessoal e este livro não é exceção e retrata a vida de um grupo de indivíduos que vive em barcos-casa que se encontram atracados no porto de Battersea, em Londres.  São todas personagens imperfeitas porque ainda não consumaram a transição de seres marítimos para criaturas terrestres, uns vivem na ansiedade de o fazerem outros presos ao medo do dia em que essa transição será definitiva. Por enquanto são água e olham-se no espelho imperfeito que a água lhes devolve, encontramos nesses barcos um prostituto que engata os seus clientes num pub ali por perto, um ex-oficial da Marinha e a sua mulher, uma mãe com as duas filhas menores e que espera o regresso do seu marido, um pintor de paisagens marítimas e outras personagens mais ou menos menores. Tudo se passa no início dos anos 60 e não deixa de ser impressionante o modo como Fitzgerald consegue captar esse momento que é uma espécie de terra de ninguém, pois ocorre depois de uma grande guerra e mesmo antes da revolução cultural e social dos finais dos anos da década que retrata. Essa pausa no tempo lê-se nas personagens, mas com uma mestria própria de um grande escritor Fitzgerald deixa-nos vislumbrar as fissuras que enraízam as personagens aos seus tempos reais, umas escolhem o passado outras o futuro, e dessa ténue linha nasce um equilíbrio dramático que sustenta o livro e onde é por demais evidente que todos são demasiado humanos para não falharem, mais uma vez e sempre.


quarta-feira, 6 de maio de 2015

Quadrimestre – Cinco leituras para quatro meses




Este ano teve início com Gilead de Marilynne Robinson um livro sob a forma de epístola, uma carta escrita por um pai a um filho que sabe que não vai ver crescer e com quem não vai poder partilhar uma experiência de vida cujo lastro se sabe perdido, mas que este pai quer deixar como herança ao filho que lhe vai sobreviver conquistando um pouco mais de tempo. Robinson é mestre de uma escrita irrepreensível, embora o tema não pudesse estar mais distante daquilo com me identifico, e relata-nos a estória de um pregador norte-americano, descendente de uma família de homens com as mesma profissão, e cujo olhar nos permite ver de relance a vida numa cidade da América profunda e sentir as ondas de reverberação desse microcosmos naquilo que nos habituámos a julgar como a vida dos verdadeiros descendentes dos colonos norte-americanos, longe da sofisticação dos grandes centros urbanos. A personagem, e a sua profissão, podem estar distantes daquilo com que me identifico mas o contorno da sua vida e os problemas mais fundamentais com ela se depara encontram-se muito próximos das minhas ansiedades cujo eco e síntese encontrei nesta frase “Every single one of us is a little civilization built on the ruins of any number of preceding civilizations, but with our own variant notions of what is beautiful and is acceptable – which, I hasten to add, we generally do not satisfy and which we struggle to live.”  Aqui encontramos o potencial de todo o drama humano, a luta perdida entre o que desejamos ser, em toda a sua dimensão estética e moral, e aquilo que somos na realidade. Estamos todos sujeitos a esta frustração e o grau do nosso sucesso e realização, como seres humanos, depende em grande parte da convivência pacífica com este olhar, por vezes cruel, que nos é devolvido pelas sombras imperfeitas dos nossos gestos.

O livro seguinte Orfeo de Richard Powers, prometia-me mundos e fundos, a começar pelo título cujo tema me deixa sempre curioso e alerta. A ideia original é muito boa, e agora aconselho os leitores mais sensíveis a desviarem o olhar (caso não queiram que vos estrague a leitura do livro), um professor de música reformado, que também é compositor, e nos tempos livres decide manipular geneticamente uma bactéria aparentemente inofensiva com o objetivo de deixar impresso no seu DNA um código musical que ela irá repetir por toda a eternidade. Powers relembra-nos que vivemos numa época de histerismo global, sobre terrorismo e ataques terroristas. A paranoia coletiva ajuda a que sejamos levados a pensar que o nosso inimigo poderá ser o nosso vizinho ou, pior ainda, alguém da nossa própria família; ninguém é inocente nesta sociedade Kafkiana imersa num tipo de tecnologia que é o sonho tornado realidade da ficção, cada vez mais próxima, descrita em 1984 de George Orwell. Nestas condições todos somos culpados inclusive um inocente reformado que faz manipulação genética na sua casa de subúrbio, claro que este mais culpado que os outros porque ousa querer mudar o mundo através de uma pequena ideia poética mas que rapidamente se torna subversiva, primeiro aos olhos dos outros e depois aos olhos dele próprio. O livro oscila entre uma história da música contemporânea suportada numa estrutura de romance, aqui entenda-se no sentido literal do termo, que na maioria das vezes não funciona. É notório que o autor se encontra dividido entre nos apresentar um conhecimento enciclopédico mas ao mesmo tempo sublinhado por uma relação de afetos que a personagem que criou vai estabelecendo ao longo da sua vida. Infelizmente nunca consegue que o livro levante voo na direção certa, seja ela qual for, porque se pressente que tudo está clinicamente ensaiado e feito num laboratório de luz fria e asséptica onde poderemos encontrar os catálogos de todas as emoções mas nunca as emoções propriamente ditas. É como olhar para uma pauta que podemos ler nota a nota, sem erros, mas de cuja leitura nunca sairá o contorno emotivo que se encontra para lá da contagem perfeita dos tempos marcados na pauta e que é a verdadeira essência da música.


[Continua]