Orfeu
e Eurídice
Refleti um pouco antes decidir
escrever este texto porque sei que vai ter um conteúdo pesado mas julgo que
esse risco será sempre preferível a continuar a alimentar a mediocridade que
insiste em grassar neste país. E medíocre é o adjetivo que classifica o espetáculo
ao qual assisti ontem à noite no Teatro Camões.
Fui ver e ouvir “Orfeu e Eurídice”
com o espírito limpo de preconceitos sobre a coreógrafa de serviço, Olga Roriz,
até porque imaginei que, em última instância, o espetáculo seria sempre
resgatado pelas sonoridades imaginadas por Glück e pela qualidade crescente dos
bailarinos que formam a Companhia Nacional de Bailado (CNB), sobre este último
aspecto não me enganei muito porque este corpo de bailado está cada vez mais
sólido e seguro, apresentando um trabalho que se tiver continuidade estará ao
nível das melhores companhias da europa. Infelizmente tudo o resto foi um
desastre absoluto, a opera de Glück aparece violentamente truncada e é-nos dado
a ouvir uma espécie de “Best of” de entre o qual nem se consegue salvar a aria
mais famosa, e que ocupa um lugar central nesta ópera, “Che faró senza Euridice”,
um canto sobre a perda absoluta de alguém que se ama, e que por isso só pode
ser um lamento solitário, foi cantado em coro por um conjunto de vozes
masculinas, estilhaçando deste modo toda a dimensão intimista da aria. Não
sendo isso suficiente temos ainda o que se passava em palco onde os
bailarinos, graças à superficialidade da coreógrafa, expressaram de modo ainda
menos intenso um dos mais belos lamentos amorosos do canto lírico.
Não tenho dúvida que a ideia deste
espetáculo teve origem na melhor das intenções nas quais se incluem a
celebração dos 300 do nascimento deste magnífico compositor que tão maltratado
foi pela personagem de Mozart criada por Peter Shaffer para a sua peça teatral “Amadeus” , mais
tarde adaptada ao cinema por Milos Forman. Na realidade, Mozart e outros
compositores ficaram a dever muito à famosa “reforma” musical levada a cabo por
este talentoso compositor oriundo da região da Baviera. Se necessitarem de mais
alguma confirmação da originalidade deste compositor basta ouvir o disco que
Cecília Bartoli dedicou ao seu génio, “Italian Arias”, no qual nos podemos
deslumbrar com excertos e arias de óperas que na sua maioria ainda estão por
gravar na integra.
À escolha de Glück também não é
alheio o facto de na tradição da ópera francesa, que ele seguiu durante grande
parte da sua maturidade musical, estarem previstos momentos de bailado que eram
integrados na ópera, muito ao gosto do publico francês da época. Mas mais do
que isso, toda a música desta ópera em particular, é de uma densidade dramática
que apela muito ao sentido do movimento corpo, embalado por melodias
inesquecíveis e muito belas. Por essa razão também Pina Bausch a terá
coreografado há uns anos atrás tornando esta peça um clássico instantâneo do
bailando contemporâneo. Não serve este texto para comprar o incomparável e
independentemente do facto de todos sabermos que a Olga Roriz nunca irá passar
de uma espécie de discípula de segunda categoria da Pina Bausch, isso não a
devia ter impedido de criar um trabalho digno tanto para os bailarinos, que bem
o merecem, como para os espectadores que tiveram que assistir a algo que, no
mínimo, deveria causar embaraço a qualquer profissional com tantos anos
dedicados ao bailado.
Existem muitas variações sobre o
mito de Orfeu e Eurídice e não cabe aqui, neste espaço, falar sobre todas elas,
no entanto para quem queira saber mais sobre o assunto aconselho a leitura do
excelente livro de Ann Wroe “Orpheus – the song of life”.
No caso da ópera de Glück é-nos
apresentado um final feliz, tão ao gosto do que era expectável na época de vida
do compositor, no entanto Olga Roriz opta pelo relato mais atávico do mito, no
qual Orfeu acaba despedaçado pelas bacantes. Nada tenho a apontar sobre esta
leitura, ou escolha, e não me choca nada que tenha sido tomada essa opção,
choca-me sim o modo como ela o fez, sem imaginação ou criatividade, recorrendo
ao óbvio e sublinhando-o com um gesto ridículo que se materializou no descalçar
das botas pelas bacantes, botas que depois foram atiradas a Orfeu antes de
elas se aproximarem dele para o consumirem, como seria expectável de qualquer
bacante que se preze. O óbvio e o ridículo de mãos dados dão sempre o pior dos
resultados e foi desse modo que terminou o bailado. Como se não bastasse tudo
pelo meio foi desastroso, a proibição de Orfeu olhar para o rosto de Eurídice
até à saída dos Infernos tomou a forma de um triste jogo de cabra-cega, a entrada e saída de Orfeu
nos Infernos foi acompanhada por movimentos longos e espaçados do corpo de
bailado que estavam mais próximos de uma má passagem de modelos, as bacantes e
outras criaturas infernais, quase que se limitavam a abanar a cabeça projetado
as suas cabeleiras como se estivesses num concerto de Heavy Metal, o
tradicional pax de deux (?!) foi tão morno que não se chega a perceber se Orfeu
e Eurídice estão apaixonados ou apenas aborrecidos com a presença um do outro,
finalmente algumas cenas de grupo até resultam não tanto pela corrida
desenfreada em palco, corrida sem sentido e perceptivelmente sem a marcação de
qualquer espécie de emoção, resultando apenas porque o guarda-roupa introduz
mais drama ao bailado do que qualquer gesto coreografado por Olga Roriz. Tal
diz muito sobre o espetáculo que nunca passou da superficialidade, nunca tocou
uma ínfima parte do sentimento encarnado pelo mito de Orfeu, que é um arquétipo
universal do amor e da sua perda, perdendo-se mais uma vez a oportunidade de o
fazer ressurgir e viver por nós, tantos séculos depois de ter sido imaginado e
escrito.
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