terça-feira, 3 de junho de 2008

Rayuela


Epifanias literárias afinal são tão raras como eram antigamente, ainda me lembro da primeira vez que li Pessoa, Shakespeare, Yourcenar, Borges, Saramago (Vintage ou pré-Nobel), Proust, Dostoiévski e talvez mais uma dezena de autores ou livros que seriam os da minha vida, se a vida também puder ser definida desse modo. Claro que se pensarmos no tempo que passou entretanto podemos chegar à conclusão que afinal não são assim tantos os momentos e autores que nos deixam marca geralmente revelada na impaciência associada à leitura de outros escritores que, comparativamente, são menores; no entanto a intolerância para com estes últimos vai-se esbatendo até ao encontro com outro autor absolutamente genial. Gosto de ser surpreendido desse modo e como a leitura desses sublimes, ou subliminares, autores aguça o que há de mais exigente no meu gosto literário, a surpresa parece que é sempre maior e o contraste mais perfeito. Está a acontecer-me isso com a leitura de “O Jogo Do Mundo” do autor argentino Júlio Cortázar, há muito que não lia um livro que me deixasse tão entusiasmado e que está a contribuir para me ajustar o sentido crítico elevando-o mais uma vez para uma fasquia que só alguns conseguem ultrapassar. Curioso também é reparar, mais uma vez, que a literatura é sempre imitação e que a melhor é aquela que resulta do trabalho do inconsciente, e que os grandes autores são aqueles que vemos espalhados pelos outros e lembro-me de ter lido, antes deste livro, o último de Dan Rhodes “Gold” e de ter pensado que seria uma espécie de imitação barata de um qualquer livro do Murakami e infelizmente sem o apurado sentido de humor de “Anthropology”, o seu primeiro livro de micro-contos, ou mesmo do surpreendente “Timoleon Vieta Come Home”. Agora ao ler Cortázar não consigo deixar de pensar que era isto que Murakami gostaria de fazer com o Jazz que nos seus livros fica suspenso de uma sugestão mas que nunca toma a sua verdadeira substância como n’ O Jogo do Mundo. O livro deste autor sul americano soa como uma belíssima peça musical, que ora parece improvisação, ora o mais rigoroso exercício criativo, é como se estivesse a ouvir os sons primordiais do Jazz que nasceu em New Orleans, que renasceu doutro modo em Chicago, mas com a vantagem de o ver projectado também no futuro; mas isso é só a banda sonora que acompanha a leitura deste magnífico livro porque depois é-nos dado ver retratado também o restante universo artístico do século XX, desde a pintura, passando pela literatura e outras áreas da criação humana. É uma enciclopédia como as enciclopédias deviam ser escritas sem entradas ou definições mas com a informação necessária para a leitura subjectiva do mundo “in” finito da criação humana, isto tudo acompanhado de uma profundidade psicológica das personagens que só é possível quando se recorre a essas mesmas criações e as tentamos definir através do comportamento de quem as vive e também de quem falha a sua percepção.

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