quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Ler a Ler


Desde que a revista Ler recomeçou a decorar as bancas de jornais e algumas prateleiras de hipermercados de livros com pretensões a livraria de culto, leia-se FNAC, comprei-a duas vezes: a primeira por curiosidade, sórdida, a mesma que me leva por vezes a comprar uma revista cor-de-rosa e da segunda vez porque na capa era anunciado um conto inédito do José Cardoso Pires. Da primeira vez serviu-me para constatar aquilo que já sabia, ou desconfiava, que é uma revista de amigos composta em grande parte por grandes promessas da literatura contemporânea portuguesa algumas das quais viram a primeira luz do dia literário no defunto, ou semi-moribundo, DN Jovem. Não tenho nada contra a amizade, ou contra o facto de se dar trabalho aos amigos, só me causa algumas reticências quando os amigos pensam todos da mesma maneira limitam-se a ecoar a opinião uns dos outros, porque isso empobrece qualquer amizade e por consequência qualquer actividade sustentada nesse tipo de relação.
A revista em termos gráficos evoluiu muito pouco desde a última vez que (a)pereceu nos escaparates, no entanto passaram alguns anos e como tal seria expectável que alguma coisa tivesse acontecido pelo seu interior. Podiam começar por brindar os colaboradores com umas fotos menos tipo cartão viva Lisboa, as quais não lhes fazem justiça. Este é, no entanto, um pormenor humorístico sem metade da graça de alguns dos textos escritos por esses mesmos colaboradores. Comecemos então pelo editorial escrito pelo Francisco José Viegas, director e mentor, e antes de mais salutá-lo por ser um editorial de duas páginas, daqueles como já não nos é dado ler muito frequentemente, onde se faz um pouco de auto-promoção, característica do escritor, sobre um programa de sua autoria que vai ser emitido em breve na RTPN. O tom mais sério, do editorial, e imagino que a sua razão de ser resulta da continuidade de uma discussão, que já vem do número anterior, e da qual me foi dado um vislumbre numa destas noites de Domingo quando fiz uma paragem pelo programa da Paula Moura Pinheiro, onde esta jornalista havia sentado frente-a-frente o Viegas e a Isabel Alçada, a das Aventuras, e onde se discutia a importância da introdução dos autores “do cânone” no curriculum escolar. Nesta discussão o Viegas, obviamente, mostrava-se indignado pela ausência desses mesmos autores do programa escolar, e para o demonstrar de uma forma veemente, a meio da discussão, saca do Moby Dick, do Herman Melville, assim a jeito de quem não quer a coisa, e nesse momento nalguns esclarecidos lares portugueses deve ter surgido um sorriso nos lábios de meia dúzia de incautos. O sorriso poderá ter origem em várias emoções, mas lá por casa venceu a da ironia, é claro. Aquela brilhante sugestão deve-lhe ter surgido no intervalo de dois charutos cubanos e dessa fumaça ele lá deve ter visto surgir a baleia branca a ser perseguida pelo feroz capitão Ahab, história para interessar sem dúvida à geração “Morangos Com Açucar”. Escusado será dissertar mais sobre este assunto uma vez que ele é autorevelatório, e sem sequer recorrer ao antigo nitrato de prata percebe-se muito bem o que está lá à espera de ser descoberto. Eu podia dar algumas pistas mas existem coisas que soam melhor caladas porque depois de ditas se tornam triste e trágicas. Só me questiono sobre a escolha deste livro em particular, talvez porque é mais butch que qualquer um dos livros de Charles Dickens ou algum conto do Oscar Wilde, autores concerteza de “cânone” afirmado mas de pena demasiado leve para o Viegas, sim leve nesse sentido; para já não falar nos vários volumes do “Em Busca do Tempo Perdido”, e livro mais canónico não deve haver, mas cujos subtítulos não ajudam, explicar Sodoma, Goromorra ou o que são raparigas em flor às criancinhas só deve ser possível depois de alguns meses de Magalhães, e para além disso ter que escolher um volume em detrimento dos outros seria sempre uma missão impossível para leitor de cânones que se preze.
Outro momento merecedor de destaque é a crónica do Jorge Reis-Sá onde se disserta sobre Philip Roth de um modo tão superficial que nem mesmo aquela senhora da escrita light seria capaz de igualar; mas ora aí está o Roth, desde há uns anos para cá é um eterno candidato ao Nobel e escritor maior da constelação literária (aqui não há espaço para qualquer ironia, desculpem lá qualquer coisinha) que felizmente não precisa deste tipo de crónicas, mas que não pode evitar ser usado por quem asseia obter pontos literários sempre que o seu nome é citado.
Depois temos a crónica do Pedro Mexia sem dúvida engraçada, de humor fino e refinado e que eu arrisco a anunciar como do melhor que a revista tem, embora os temas sobre os quais ele versa sejam cada vez mais de velho precoce há que admitir que ele escreve bem, tout cours, por muito que as suas opiniões por vezes me irritem e se encontrem no pólo oposto das minhas, (in)felizmente encontro mais coisas em comum com ele do que aquelas que desejaria; aliás este é um fenómeno que me acontece com outro indivíduo, o Pereira Coutinho, e tenho que reconhecer, ainda bem que assim é porque ambos escrevem como poucos cá por este burgo.
Vale ainda a pena ler o conto do José Cardoso Pires, porque é sobre os fantasmas do Pessoa à solta pela cidade que tanto amo, Álvaro de Campos à procura da sua Daisy em Lisboa, que através das mãos de Cardoso Pires passa a ser aquilo que só poderia ser, uma carícia profunda e sentida à nossa capital e uma vénia emocionante ao nosso poeta maior. Depois há ainda o resto do dossier de homenagem ao escritor lisboeta, com declarações de amigos e ensaios sobre a obra e livros mais relevantes.
Finalmente há a crónica do Eduardo Pitta com o seu tom bitch cada vez mais apurado, ainda sem a secura de um Edmund White ou a erudição despreocupada de Gore Vidal, mas algures lá pelo meio há-se surgir uma voz sem dúvida original; talvez quando ele deixar de querer emular qualquer uma destas suas, óbvias, referências.
No fim e em suma, apesar do director e de alguns textos, foram muito bem empregues os € 5 que dei pela revista.

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