quarta-feira, 28 de maio de 2008

Beggining to End


No início desta peça, de Samuel Beckett, é-nos apresentada a imagem do palhaço pobre que poderíamos ver num qualquer circo de província com o cabelo penteado em triângulo, feições marcadas por esgares cómicos que se tornam soturnos, sapatos demasiado grandes e uma roupa velha, gasta e cheia de pó. Este palhaço é um pouco mais triste do que os outros, e essa tristeza é mais humana e quando nos faz rir deixa-nos sempre um sentimento de culpa, porque nos faz rir da tragédia do que se vislumbra ser, ou ter sido, a sua vida. Este é um palhaço que não teria lugar nem nos circos tradicionais nem naqueles mais modernos cheios de espectaculares acrobacias. É um palhaço estranho que só está bem na realidade, embora quase tudo nele pareça irreal e derivado de um pesadelo com o qual se conformou e que ele está decidido a viver até ao fim; um fim que ele escolhe, ou julga escolher.
Um palhaço que anuncia a sua morte no início do espectáculo, e que no nosso esforço de catalogar poderíamos pensar ser um mendigo meio louco daqueles com os quais imaginamos podermo-nos cruzar numa grande metrópole. Mas à semelhança do que aconteceria se com eles decidíssemos conversar, vamo-nos apercebendo que sim, ele é um mendigo, sim ele até pode ser semi-louco mas a sua lucidez por vezes deixa-nos encadeados porque de entre um discurso que parece fragmentado e pouco lógico, vão surgindo ideias que nos assombram e sobre as quais sabemos que nunca havemos de ter uma resposta. Neste caso a ideia do fim, mais precisamente da morte e Beckett até fala através da personagem da possibilidade de algo para além desse fim mas é uma visão onde só existe a perspectiva da continuação dos mesmos rituais, onde se vão perpetuar as mesmas discussões familiares, alimentar as mesmas agruras, mas desta vez gritadas do Inferno para o Céu, este último um local de onde a personagem sabe que foi erradicada.
Outro tipo de morte anunciada no texto tem a ver o com a possibilidade de os deuses nos brindarem com múltiplas vidas e de nós cometermos sempre os mesmos erros, vivermos sempre do mesmo modo, com pequenas variações, que em nada contribuiriam para alterar o resultado final. Razões suficientes para que este palhaço Beckettiano e niilista anuncie que teria preferido ficar toda a sua vida numa sala tendo apenas por companhia um relógio para marcar o tempo, sendo esse mesmo tempo preenchido a dormitar, recostado num sofá, à espera da altura certa para fazer subir os pesos que permitiriam ao relógio continuar a sua corrida na direcção do infinito.
O actor, João Lagarto, sozinho em cena cumpre muito bem a leitura do texto que também traduziu e encenou. Por vezes existe uma intromissão do actor que pode resultar como sendo destrutiva da concentração do espectador, mas até isso é muito bem disfarçado pois a fragmentação do texto permite-o e presta-se a algum improviso; no entanto na minha leitura, e por isso mesmo, o texto deveria ser trabalhado de um modo mais ortodoxo. Este facto não desvirtua em nada o trabalho do actor e até serve para ligar de um modo mais profundo a personagem do palhaço à do ofício de actor, acrescentado desse modo uma auto-ironia que se associa muito bem com as palavras inventadas pelo dramaturgo irlandês.

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