Capricho
Ela sabia que a
honestidade, quando partilhada com estranhos, suava sempre a falso mas isso não
a impediu de começar a falar e de por vezes partilhar, com homens que acabara
de conhecer, o ridículo dos seus pensamentos mais profundos. Claro que enquanto
falava o ia avaliando, tentava imprimir na sua memória características físicas
que ela sabia estarem condenadas ao esquecimento; a foda não tinha sido má de
todo, para uma primeira vez, as primeiras vezes eram quase sempre difíceis.
Agora falava sobre trivialidades com aquele quase estranho e isso para ela era
como se estivesse no consultório de um proeminente psicanalista, ao mesmo tempo
fazia o esforço possível para o não esquecer e sentia-se ligeiramente excitada
com a possibilidade de voltar a fodê-lo a seguir a esta pequena conversa, quase
de circunstância, não fosse o peso de alguns assuntos que ela por vezes
insistia em debitar. Ela não se atrevia a olhá-lo nos olhos porque sabia que
isso seria fatal para a continuação do seu monólogo, inicialmente, quando ainda
tinha pouca experiência destas situações fazia um esforço por fazer essa
ligação com o outro, depois percebeu que era inútil, o outro ou mostrava enfado
ou uma espécie de interesse dissimulado que também era uma forma de enfado, ela
sabia que estes desabafos só lhe diziam respeito a ela mas não estava muito
preocupada em repetir a situação com o mesmo indivíduo era-lhe indiferente que
ele estivesse ou não interessado nas palavras dela. Hoje decidiu que lhe queria
falar sobre o seu marido, e dizia-lhe tudo o que havia a dizer sobre ele, ou
pelo menos aquilo que ela imaginava saber sobre ele. Nem todos aceitavam assim
com tanta naturalidade conversar sobre o marido da mulher com quem haviam
fodido, mas através da exploração subtil do voyeurismo dos outros ela conseguia
mantê-los interessados. Talvez porque ela, conscientemente, fazia o jogo deles
e dava-lhes a esperança remota de poder comparar a foda deles com a do marido.
Ela nunca os satisfazia completamente mas também nunca os desapontava, era
fácil manter esta linha de compromisso e ajudava-os a mantê-los atentos ao que
ela ia dizendo. Isto claro só acontecia quando falava sobre o marido, para os
outros temas era mais complicado manter a atenção destes homens. Com as
mulheres ela achava mais fácil manter estes monólogos e as fodas eram
igualmente boas.
Aquele era o
apartamento dele, situado no 8º andar de uma torre de apartamentos de subúrbio,
e ela tinha ficado virada de frente para a janela, o vidro cristalino deixava
ver uma fração de paisagem citadina, era a hora de almoço de um dia de verão,
por isso a intensidade da luz fazia derreter os contornos dos prédios que
pareciam querer ascender nos céus, sublimados, e desaparecerem naquela massa de
azul celeste. Por segundos deixou o seu olhar perder-se nessa paisagem e quando
recuperou consciência do silêncio que
tinha deixado suspenso, para sua surpresa foi interpelada por aquele estranho
que lhe perguntou se era feliz. Os prédios depressa readquiriram novamente a
sua constituição sólida, a vulgaridade daquela pergunta deixou-a pasmada e ela
que sabia muito bem onde isto ia dar decidiu quebrar mais uma regra do jogo,
que devia ser sempre só ela a jogar, e olhou-o diretamente nos olhos. Precisava
de saber se ele era alguém a quem devia responder sim ou não, se seria um
otimista ou um pessimista. Se adivinhasse o conteúdo da resposta que ele
desejava ouvir ainda havia esperança de poder acabar com aquele diálogo que ela
queria transformar outra vez em monólogo. A máscara que ele usou parecia
impenetrável e ela teve que fazer um esforço suplementar para a poder ler,
mesmo assim tinha a certeza que se ia enganar por isso socorreu-se da única
resposta que a poderia salvar do silêncio, do que tinha deixado interrompido
quando parou o olhar nos edifícios derretidos e que agora se tinham tornado tão
reais como a tentativa de interação que ele tentava preconizar. Ele
levantou-se e aproximou-se dela, ela ignorou esse movimento até ao momento em
que ele aproximou o rosto do dela e a beijou suavemente nos lábios engolindo
algumas das suas palavras. A ela pareceu-lhe que ele lhe havia roubado não só
aquelas últimas palavras como todas as outras que se lhe iam seguir e por isso
manteve o silêncio e nesse momento ele aproveitou para lhe fazer a mesma
pergunta. És feliz? E só então ela percebeu que não era a reposta que lhe
interessava, ele sabia já a resposta, ambos sabiam qual era a resposta, o que
lhe interessava era outra coisa e ela ainda não tinha percebido o que era, e
nesse momento sentiu-se assaltada por um daqueles momentos de pânico que eram
cada vez mais raros nela. O pânico só se manifestou dentro dela. De fora era
somente uma mulher que o afastou de si, empurrando-o na direção da janela e
pedindo-lhe que a abrisse, acabou por lhe dizer:
- A minha
felicidade seria agora tu lançares-te pela janela e eu ficar aqui na cama por
de entre os lençóis que ainda guardam o teu cheiro.
Ela fechou
ligeiramente os olhos e quando os voltou a abrir ele já lá não estava. Seguiu-se
um silêncio musical, daqueles que anunciam o final de um belo quarteto de
cordas, e ela respirou fundo entregue à memória do cheiro que ele lhe tinha
deixado na cama.