Hoje só lhe apetecia arrumar carros amarelos, queria fazer um canteiro como aquele que deixara na varanda da sua querida Luísa, há dez anos atrás, antes de ela decidir lançar o seu corpo sobre as rosas, fazendo-se pairar alguns segundos sobre elas para depois se deixar cair no alcatrão a sete metros de altura.
Mas os carros que lhe apareciam eram todos brancos, vermelhos, azuis, verdes, cinza e com eles imaginou outros jardins e canteiros, mas não era esses que queria reproduzir. Lá vinha mais um carro branco e pensou logo em malmequeres, jarros, rosas brancas, mas nem se deu ao trabalho de fazer o gesto mecânico de indicar um lugar vago, auxiliado pela folha de jornal dobrada em quatro.
Ah! Lá vem um carro amarelo – disse para si em voz alta – é agora que vou dar início à construção do meu jardim. Fez o gesto indicando o lugar vago, lugar do seu canteiro de rosas amarelas e para seu espanto o condutor ignorou-o e decidiu arrumar o carro noutro espaço mais à frente. Ficou furioso, deitou a folha de jornal ao chão e dirigindo-se de imediato para onde o carro amarelo havia arrumado. Ao chegar junto à porta do condutor julgou reconhecer a cara por detrás do vidro do carro, calou todos os impropérios que tinha guardado desde a separação da sua folha de jornal, abriu muito os olhos e disse:
- Joana, és tu?
Era a sua filha, tinha a certeza, que nunca mais vira desde a morte da Luísa; tinham passado tantos anos e afinal foi noutro canteiro que reencontrou a flor que julgava perdida.
- Minha filha, não me reconheces, não te lembras de mim?
- O Sr. deve estar enganado.
E com estas palavras selou o diálogo por ele iniciado. Ela tinha agora a mão estendida na qual segurava uma moeda de 50 cêntimos. Ele disse:
- Mas filha, sou eu!
Ela fechou a porta do carro e ao mesmo tempo deixou cair a sua carteira no chão. Ele baixou-se para a ajudar, ambos se ergueram rapidamente, ao mesmo tempo ela já com a carteira na mão. No rosto daquela que julgava ser a sua filha ele vislumbrou uma sombra de reconhecimento seguida pelo marejar súbito dos seus olhos, ela chorava e nessas lágrimas ele leu a resposta que ela não lhe queria ou podia dar. Não disse mais nada, deixou-a ir e foi imaginar outros jardins, não tão perfeitos e belos como aquele que ainda agora tinha perdido novamente. Nesse dia e a partir daquele momento todos os carros lhe pareciam flores mortas.
quinta-feira, 27 de dezembro de 2007
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