Ao olhar na direcção da origem da chuva reparou que o céu cinzento-escuro estava nesse momento a ser quebrado por um bando de pássaros. Deixou o olhar pousar sobre o corpo de uma dessas aves e quando o perdeu de vista continuou a fixar as nuvens que pareciam renascer de um tempo anterior à sua existência. Reparou que se tinha esquecido do telemóvel no escritório, mas não lhe apeteceu voltar lá, se alguém lhe ligasse saberia o que queriam amanhã de manhã. Precisava dessa liberdade que ao mesmo tempo acentuava a sua solidão. Mas talvez a solidão só existisse porque marcada pela sua procura de mensagens e chamadas no visor do telemóvel. Uma espécie de solidão mais triste, porque dependente dos outros, ele sempre havia preferido a outra solidão de que já não se lembrava, aquela que dependia só dele. As ruas estavam quase desertas ou cheias de transeuntes apressados, de certeza quase todos a caminho de casa. Como eram poucas as pessoas com quem se cruzava decidiu prestar-lhes mais atenção, fixá-las para as poder esquecer melhor. Não reconheceu ninguém, eram só estranhos uns de chapéu aberto, outros enfrentando a chuva a descoberto. Nenhuma dessas pessoas lhe devolveu o olhar. Ele também devia ter trazido o chapéu-de-chuva, mas pareceu-lhe que o tempo ia melhorar, enganou-se. A vida era feita destas pequenas decisões, e quase todas elas erradas.
Só reparou nela algum tempo depois de estar a fixá-la há algum tempo, notou primeiro o incómodo desse olhar, incómodo do qual ela não se apercebeu porque nem reparou que estava a ser observada. A sensação de desconforto era só dele e não tinha origem na descoberta de estar a observar assim alguém de um modo tão intenso, tinha origem no reconhecimento daquela mulher. Ele sabia quem ela era, talvez ela já não se lembrasse de quem ele era, ou para ser mais preciso de quem tinha sido. Pensou no absurdo, na possibilidade de se aproximar dela, de lhe falar. Nesse momento sentiu que era ele quem estava agora a ser observado. Ela já tinha desaparecido do seu campo de visão e no seu lugar estava agora um homem que o olhava directamente nos olhos, ele não desviou o olhar, retribuiu-o com uma interrogação no rosto. O outro indivíduo deve ter interpretado isso como um sinal reconhecimento da sua parte porque decidiu aproximar-se com um sorriso aberto.
- Como estás? Pensava que não me tinhas reconhecido.
E não reconheci, ainda não sei quem possas ser – pensou ele.
- Já lá vão alguns anos.
E ele já tinha desistido de fazer o tal esforço mental que lhe permitiria saber quem era aquele homem ainda um estranho. Há muito que tinha deixado de se preocupar em aprofundar situações destas. Se não se lembrava, encenava o melhor que podia uma espécie de reconhecimento superficial, deixava o outro conversar, fazer as ligações, falar de um suposto passado em comum e geralmente assim tudo fluía bem até à despedida que nunca era coroada com a marcação de um novo encontro e sempre com um diplomático “muito gosto em rever-te”, “estás na mesma” ou “até breve”. Desta vez foi diferente porque o outro interveniente se apercebeu de que algo estava errado.
- Já percebi que não me estás a reconhecer...
Desarmado por esta interpelação que até à data mais ninguém se havia preocupado em pronunciar, quer se tivesse apercebido ou não dessa realidade, deixou-se afundar num silêncio ainda mais comprometedor.
- Queres que eu te ajude a recordar? Ou talvez seja melhor esquecer que nos reencontrámos?
- Sim talvez seja melhor assim.
- Tudo bem, eu percebo.
Nesse momento a chuva aumentou de intensidade.
- Não queres boleia?
Ele estava a referir-se à possibilidade de ambos se abrigarem sob o mesmo chapéu-de-chuva.
- Não obrigado.
- Claro, também me parece que já não te vais molhar mais.
E ele sorriu, e por momentos esteve quase a reconhecer aquele sorriso. Por associação a ela, àquela estranha mulher que se havia diluído na chuva. E foi talvez induzido por essa espécie de recordação que decidiu, contra a sua vontade, continuar a conversa que o outro havia tentado.
- Realmente não me lembro de quem sejas. Mas para ser sincero acabei de ver uma pessoa exactamente onde tu estavas ainda há pouco, era uma mulher de quem me recordo. Mas ela estranhamente desapareceu e quando voltei a mim, desperto de uma espécie de transe do qual não me tinha apercebido, estavas lá tu no lugar dela.
- Isso não é nada estranho. Quem tu viste foi a minha mulher e foi ela que me disse que te tinha avistado aqui. Ela agora foi ali àquela loja. E eu tomei realmente a posição dela. E estava a observar-te à distância. À espera de um reconhecimento que afinal não veio.
- Lembro-me da tua mulher, sei que a conheço.
- Claro, como me conheces.
- Desculpa mas de ti não me lembro.
- Não te recordas...
- O teu sorriso não me é estranho, mas fez-me lembrar ela e não despertou em mim qualquer recordação sobre quem tu possas ser.
- Eu posso ajudar-te dizendo quem tu foste para ela.
- Eu sei que já a amei.
- Sim foste o amante dela.
- E ela já era casada?
- Sim. Comigo.
Desde que este diálogo teve início os dois homens encontram-se abrigados sob o chapéu-de-chuva e conversam muito perto um do outro.
- Não me lembro de nada. Peço desculpa. Só me lembro de que a amei muito.
- E ainda amas?
- Acho que não.
- Foi ela quem te deixou.
- Disso não me recordo.
- Deixou-te por cobardia, não porque não te amasse também.
- E tu ainda a amas?
- Muito. Ela sacrificou-se por mim. Mas eu não amo mais por isso, houve uma altura em que a até a amei menos por isso.
- Eu já não a amo.
- Como sabes isso se não a tinhas voltado a ver desde que se separaram?
- Tens razão, talvez me esteja a tentar convencer disso.
Ao longe ela aparece e acena na direcção dos dois.
- Queres falar com ela?
- Quero. Mas não o vou fazer.
- Porquê?
- Porque já nada tenho para lhe dizer.
Ela pára de acenar. Os dois homens despendem-se.
O homem fica sozinho à chuva a observar o reencontro do casal. Existe uma breve troca de palavras entre eles e ela olha na direcção do homem sozinho que se encontra à chuva, ainda imóvel. O olhar dela não consegue ser completamente opaco. Atravessa a chuva e pousa na memória partilhada pelos dois ex-amantes. Nesse preciso momento ele recorda-se de tudo, das tardes passadas juntos e recorda-se de pequenas coisas que sustentaram essa memória até há pouco tempo perdida. Reflexos de luz sob o rosto dela. De que o sexo entre eles parecia sempre triste. Mas essa não era a recordação mais forte. Na sua memória despertaram inumeráveis momentos infinitesimais que seriam capazes de preencher anos de vida. Deixou-se estar a ser observado durante mais algum tempo até que começou a sentir o frio da chuva atravessar-lhe o corpo. Sentia-se diluir não pela chuva mas pelo olhar penetrante e agora doloroso daquela mulher. Percebeu que ela ainda o amava e no entanto ele já não sentia nada por ela. O amor dela doía-lhe e deixava-o humedecido mais do que aquela chuva que parecia não querer parar. O casal já se tinha ido embora mas ele tinha ficado fixo naquele local, preso às memórias partilhadas com aquela mulher. Um forte arrepio de frio fe-lo avançar e sair daquela posição estática. Queria perceber porque é que tinha deixado de amar aquela mulher, a razão mais óbvia teria sido a rejeição, mas essa era uma razão fraca, ninguém deixa de amar outra pessoa só porque é rejeitado.
Foi para casa, despiu-se e tomou um duche de água bem quente. Sempre na companhia daquela mulher. Mesmo depois disso o frio não lhe passava, talvez me tenha constipado, pensou. Mas sabia que era um frio diferente. Sentado na cadeira de leitura com um livro aberto no colo continuava a sentir o corpo gelado e aos poucos foi-lhe dado perceber porquê. Percebeu que há muito ninguém o amava, que ninguém o amava como aquela mulher o tinha feito. Naquele dia à chuva tinha perdido esse amor que nem sabia ainda possuir. E no lugar desse amor tinha ficado um poço negro cuja profundidade ele sabia não estar à altura de medir. Sentia apenas as paredes frias desse poço a roçarem na pele e a penetrarem lentamente no seu corpo.
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
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